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Cartas aos autores

Atualizado: 9 de set. de 2019

CARTA AO AUTOR

De: Laura Pires

Para: Pierre Clastres


Brasília, 10 de Setembro de 2018


Caro Pierre,


Você não me conhece, me chamo Laura, nasci no interior de Minas Gerais, Brasil nos anos 90, mais especificamente em 91. A década de 90 é um caldeirão de coisas – desde as mais incríveis até as mais bizarras – que não consigo explicar e, apesar de estar de alguma maneira blindada, a muitas dessas coisas por ter nascido em uma família de tradição cristã e de vigília constante sobre o comportamento de sua prole, a escola e os vizinhos estão aí para tirar a gente da bolha; e obviamente minha própria curiosidade foi o que sempre foi me moveu. Dancei ao som de Ragatanga, assisti ao filme A Lagoa Azul incontáveis vezes, e também O Boneco Assassino, enquanto almoçava. Foi uma infância e tanto. Um vizinho me ensinou a arte de mostrar à outra pessoa o dedo médio erguido, na época não entendia a utilidade daquilo, mas hoje agradeço, pode ter resultados terapêuticos. Enquanto crescia, vi grandes mudanças no país, pessoas ao meu redor ascendendo socialmente, por exemplo, mas também vi pensamentos fascistas ganhando cada vez mais força.


Com o passar do tempo fui descobrindo meu amor pela dança que culminou com a minha entrada em uma faculdade para cursar licenciatura em dança. Mudei para a capital do Brasil para estudar e trabalhar. Descobri que para conseguir estudar eu precisaria trabalhar a ponto de não ter tempo, nem energia para estudar, uma balança difícil de se equilibrar. Nesse trajeto todo seu livro me encontrou. Dentro do projeto “Pequeno Tratado de Violências Cotidianas”, do coletivo CEDA-SI, li seu livro Arqueologia da Violência: pesquisas de antropologia política. O exemplar que chegou até mim está em sua 3ª edição pela editora Cosac Naify de São Paulo.

Talvez você não saiba, mas em 1980 compilaram vários escritos seus em um livro após sua morte, em 1977. Espero não estar trazendo notícias incômodas. As pessoas costumam fazer isso, encontrar formas de que quem se foi ainda permaneça. Não digo que isso seja bom ou ruim, pois cada um lida da forma como pode com esse mistério que é a morte. E cá estou eu escrevendo a alguém que já se foi. Seria bastante falso da minha parte dizer que sinto muito pelo seu falecimento. Pela forma que ocorreu, sim, sinto muito. Imagino que gostaria de ter te conhecido. Se eu tivesse o poder de escolher, você teria falecido dormindo, em casa, depois de retornar de uma de suas viagens por terras indígenas, ou te daria o poder de escolher, mas jamais seria em um acidente de carro.


Preciso dizer que gosto de como você escreve, e principalmente descreve as coisas. Mas a leitura só é possível para mim porque tenho um exemplar traduzido para o português por Paulo Neves; francês é uma língua interessante, mas deixo para vocês, franceses. Dá pra sentir seu tédio nas infinitas extensões de rio percorridos no extremo sul da Venezuela em sua viagem entre os Yanomami juntamente com Jacques Lizot. Seu apreço e admiração pelas comunidades indígenas até nos momentos em que eles esvaziavam sua mochila, sua relação com os anfitriões e a vida cotidiana nas comunidades, sempre descritos com alegria. Arriscaria dizer que você tem inclinações à Anarquia; também tenho lá minha simpatia. Fiquei muito tentada em ler A Sociedade contra o Estado, o que pretendo fazer em algum momento da minha vida. Só para você saber, é assim que o livro começa.


O segundo capítulo é sobre o relato de Elena Valero, que foi transformado no livro Yanomama pelo italiano Ettore Biocca. Aos 11 anos de idade ela foi capturada pelos Yanomami , com quem viveu desde então. Aos 33 anos decidiu sair da comunidade e retornar ao mundo dos brancos. Fico pensando que, se fosse o contrário, talvez ela não tivesse retornado com facilidade. O Estado está sempre faminto e devora tudo sem pestanejar. Pergunto-me que lugar essa mulher ocupava entre os indígenas. Qual era a distância entre a mulher branca e a indígena?


Talvez eu não seja capaz de absorver e nem de expor nessa carta com profundidade todos os aspectos que você apresenta da vida de uma comunidade indígena e tudo que senti e refleti enquanto lia seu livro; quem sabe daqui alguns anos. É difícil admitir, mas sou uma pessoa que foi ocidentalizada de muitas maneiras, e isso é extremamente limitante. Sinto que perdi muitas possibilidades de desenvolver meu próprio pensar e ser em todos esses anos em que estive envolvida por esse sistema de crenças de alienação em massa. Tenho dado meus passos na busca por ver a vida de outras maneiras, ampliar as possibilidades da existência e sobre isso só posso lhe dizer uma coisa, paciência.


O Etnocentrismo e o etnocídio surgem nos capítulos terceiro e quarto, o primeiro sendo um braço do Estado com força suficiente para trazer à tona o segundo. Nas descrições de viagens “turísticas” de pessoas brancas às comunidades indígenas que preenchem as páginas do capítulo terceiro, revela-se a relação de superioridade que o etnocentrismo ocidental estabelece com outras culturas, destinando a elas a posição de exóticas e fazendo da existência do outro um mercado de consumo completamente alheio a reflexões e afetamentos. No decorrer do capítulo quarto, vemos a força do Estado de aniquilar e homogeneizar a todos com quem se encontra no caminho. Tendo os indígenas uma forma de vida que difere do pensamento capitalista de acúmulo de bens e alta produtividade diante da mão etnocida do Estado, ou ele se dobra a este poder, ou deixa de existir.

Lendo esses capítulos me lembrei do filme O Abraço da Serpente, que foi lançado em janeiro de 2016 dirigido pelo cineasta colombiano Ciro Guerra. O filme narra da perspectiva da jornada de um explorador europeu o que aconteceu às diversas comunidades indígenas após seu contato com a cultura europeia, que os atravessou sem compaixão. Outro filme é Ex Pajé, lançado em abril de 2018, com direção de Luiz Bolognesi, cuja história é de um pajé que passa a questionar suas crenças após o contato com brancos.

Nos capítulos que se seguem surgem com mais ênfase a guerra e o poder nas sociedades indígenas. Devo aqui deixar meu desafeto por expressões como “povos primitivos” ou “selvagens”, eles chegam a meus ouvidos como algo pejorativo, um adjetivo vindo de alguém que se considera evoluído. O Estado carrega essa ilusão de evolução, e olha para tudo ao seu redor que não se parece com ele como algo inferior. Mas para mim particularmente é difícil considerar que um sistema que só oprime possa ser uma evolução. Para quem é essa evolução ou elevação social? Não tem sido para mim, nem para quem eu conheço.


Pois bem, ao contrário de diversas explicações simplistas que, de forma presunçosa eu diria, tentaram dar conta da complexidade e da diversidade das comunidades indígenas, percebo que a riqueza de detalhes em suas descrições e críticas a alguns pensadores buscam traçar uma nova imagem desses povos. Mas me pergunto se a sociedade ocidental está realmente interessada nessa imagem que difere tanto daquela que já foi pintada do indígena que não tem acesso a todas as maravilhas do mundo capitalista ou que é um pagão e precisa ter sua alma salva.

O Estado sobrevive de duas forças que se retroalimentam: o desejo de dominar e o desejo de ser dominado. Então a sociedade se divide entre essas forças e todas as suas práticas reafirmam essa hierarquização. Corrija-me se eu estiver errada, por favor. Já as comunidades indígenas são contra o Estado, uma vez que elas não se dividem entre superiores e inferiores e todas as suas práticas reafirmam a solidez da unicidade do coletivo. Até mesmo a guerra tem a função de garantir a indivisão interna dos grupos. O guerreiro, o pajé, o xamã não guerreiam nem lideram em causa própria, mas de acordo com os interesses do grupo e o desejo de se manter indiviso. O poder é exercido na coletividade e no sentimento de pertencimento. Se ambições pessoais se sobrepõem ao coletivo, tal pessoa pode ser abandonada e até morta pelo grupo. Passando pelos diferentes grupos – povos das florestas, povos andinos e tupi-guaranis – é possível perceber pequenas alterações nesse modo de funcionamento da comunidade que abre espaço para outras práticas, como é o caso das etnias andinas que são mais dadas à conquista de outros povos e territórios e possuem uma forma de organização mais hierarquizada quando comparados com os povos da floresta, mesmo assim mantendo uma certa liberdade religiosa de seus conquistados.


Já a sociedade de Estado existe da obediência cega ao tirano, ou tiranos. Esse desejo por servir desumaniza as pessoas e suas relações. Sobre isso eu tenho uma teoria que é a seguinte: nesse jogo de tiranos e servos que se espalha pelas relações humanas, permitindo que surjam diversas tiranias e subserviências diárias sob os olhares atentos do chicote do capitalismo parece ser mais fácil desencorajar alguém que decide buscar por alguma liberdade que seja, do que ir junto. Porque é parte importante para a existência do Estado que a sociedade não se veja como um coletivo, perpetuando as opressões e todo mundo fica “felizinho” com a contribuição que dá para que a máquina continue funcionando e vigiando para que ninguém sequer pense em fazer outra coisa diferente de reproduzir o Estado em diversos níveis sociais. Nesse sistema, quem nada gera, nada produz, nada consome, não é visto com bons olhos. Um exemplo disso que você traz em suas comparações é a fama de preguiçosos que os indígenas costumam ter para a turma da cultura ocidental por não terem interesse no acúmulo de bens e viverem com o necessário para a existência do grupo.


Cá entre nós, você acha possível derrubar o Estado ou teremos sempre que passar pelas brechas do sistema em busca de outras maneiras de existir em sociedade?


Você acha que como sociedade somos capazes de viver sem Estado?

Não precisa ter pressa em responder, aliás, não se sinta obrigado a responder.


Abraços,

Laura

P.s.: onde você estiver, veja esses filmes, você vai gostar.


 

CARTA AO AUTOR

28/02/2019

Prezado Domenico Losurdo,


Começo esta carta fazendo um adendo, pois parte dela foi escrita antes que o golpe no Brasil se concretizasse definitivamente, e percebi que foi em outubro de 2018, pouco depois de você falecer. Somente em 2019 soube da sua morte em junho de 2018. Fiquei muito triste com essa notícia, pois, ao finalizar a leitura do seu livro, percebi que tivemos uma perda de valor inestimável. Seu livro me levou a reflexões profundas e tenho muito a lhe agradecer. Essa observação quanto à escrita em duas fases é bastante relevante, pois talvez comprometa a linearidade desta carta. No entanto, preferi preservar as reflexões anteriores.


Escrevo para dialogar sobre seu livro A Não Violência: uma história fora do mito. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2012. Antes de tudo, gostaria de dizer o quanto fiquei perplexa com a quantidade de violências ocultas que permeiam esse universo, ou seriam raivas justas? Refleti sobre algumas dessas violências “invisíveis” e percebi que nem mesmo em seu livro, onde os bastidores da “Não Violência” foram tão explícitos, algumas foram sequer mencionadas, mas pra mim ficaram gravadas como registros camuflados nas entrelinhas.


Não pretendo usar fidedignamente suas palavras nesta carta, quero que ela seja mais informal e registre apenas o que ficou para mim após a leitura do seu livro.


Acredito que suas reflexões sobre Gandhi tenham sido bastante relevantes. E, inspirada no teor de suas palavras, adentrei e refleti sobre algumas questões que não encontrei em seu livro.


Você fala amplamente sobre Gandhi e a estratégia da não violência. Corrija-me caso eu esteja errada, mas entendi que você intencionou deixar claro que Gandhi achava que seu exército hindu era repleto de homens “Efeminados” como assim os chamava, já que não eram virilmente preparados para a luta e, de certa forma, eram também acovardados.


No entanto, Gandhi recrutava seu exército “efeminado” para a guerra e os convencia a assumir a estratégia da não violência, de maneira que não poderiam usar nenhum tipo de arma e nem mesmo levantar um único dedo contra seus opressores ingleses. Nesse caso, a não violência tinha um papel revolucionário estratégico, cujo intuito era causar comoção mundial e conquistar a independência da Índia.


Caro Domenico, no seu livro, descobri que Gandhi teve como fonte de inspiração o livro Desobediência Civil, de Thoreau, o que me deixou bem curiosa em lê-lo também. Além disso, me interessei em rever o filme que retrata sua biografia, porém, desta vez com um olhar diferenciado, permeado pela sua pesquisa e pelas minhas próprias reflexões ao partir dos seus escritos. Procurei, também, manter um olhar atento às camadas de violências sutis que permeiam o histórico da não violência.


Li, então, Desobediência Civil, de Thoreau, e percebi que, de certa forma, ele incita o pensamento revolucionário ao deixar claro que todos os homens devem ter o direito de negar-se à obediência e se opor ao governo quando este é tirano, ineficiente e insuportável. Talvez, influenciado pela leitura desse livro, Gandhi passou a acreditar que era melhor morrer que condenar gerações a uma vida de escravidão. Pois, para Thoreau, o povo tinha que deixar de ter/ser escravos e lutar, mesmo que isso lhes custasse sua própria existência como povo. E assim, Gandhi o fez, e como um líder nato, convenceu toda uma nação a lutar com ele.


Encontrei um trecho de imensa profundidade em seu livro, que para mim justifica, e muito, as ações de Gandhi: “É fato, porém que em Fanon é possível ler: ‘No nível dos indivíduos, a violência desintoxica, liberta o colonizado do seu complexo de inferioridade (p.189)’”. Talvez essa frase seja repugnante, e talvez eu pareça incoerente ao citar o ato revolucionário de Gandhi como violento. Entendo como um ato de raiva justa. No entanto, agora tenho a deixa para refletir sobre as violências sutis que aparecem como um pisca-pisca incessante em minha mente: Não seria violência incitar toda uma nação a entrar numa guerra em que as pessoas não podem usar sua força nem mesmo para se defender? Por mais politicamente estratégica que essa luta possa ter sido, quantas pessoas e famílias morreram? Em contrapartida, quantas gerações foram salvas por esses heróis? Quanta dignidade foi perdida e, ao mesmo tempo, quanta autonomia e autoestima foram resgatadas após a conquista da independência da Índia? Agora, vamos refletir um pouco sobre a greve de fome de Gandhi. Nesse ato, vejo uma grande autoagressão em prol da não violência; no entanto, com esse ato ele conseguiu manter a estratégia da não violência e conquistar a tão almejada independência.


No filme Gandhi (1982), de Richard Attenborough, descobri que Gandhi usou recursos como greve geral, recusa e boicote ao pagamento de impostos abusivos, recusa em usar as roupas industrializadas vindas de fora e o ato político de voltarem a tramar os próprios tecidos e fazerem suas próprias roupas. Atos revolucionários que boicotavam a tentativa de subjugação e controle do seu povo. Fiquei fazendo relações com o que acontece aqui no Brasil, e me vieram algumas reflexões.


E se todos nós Brasileiros nos recusássemos a consumir o combustível que é refinado fora do Brasil? (esse combustível encarecido escancaradamente de maneira abusiva para o bolso do Brasileiro, assim como todos os produtos que dependem dele pra estarem no mercado).


E se todos nós Brasileiros parássemos totalmente de trabalhar até que todos os políticos corruptos estivessem na prisão? Qual seria a massa de manobra que trabalharia pra enriquecer esses ladrões amplamente favorecidos?


E se nos recusássemos a pagar todos os impostos abusivos e enchêssemos as prisões? E se fôssemos pra rua e quebrássemos todos os pardais e instrumentos de manipulação que estão sendo utilizados para roubar o dinheiro que é fruto do nosso trabalho suado.


E se todos nos recusássemos a sermos escravos e trabalhar por valores que não correspondem ao valor real do nosso trabalho?


E se boicotássemos o sistema e criássemos um mecanismo de troca de serviços coletiva?


E se boicotássemos o neoliberalismo e parássemos de comprar todos os produtos transgênicos ou com agrotóxico?


E se começássemos a enxergar que a vida é muito mais que trabalhar para pagar aluguel e depois morrer? E se fossemos solidários, colaborativos e criássemos diálogos onde o povo caminha apenas na estrada da anticorrupção, antiabuso, antiautoritarismos, antiopressão, antifascismo, antirracismo, antidesigualdade, etc.?


E se todos nós entendêssemos que todo mundo tem direito à vida e, como diz Ney Matogrosso, todo mundo têm direito igual? E se todos déssemos nossa vida pela igualdade e pela liberdade? Talvez seja mesmo melhor morrer do que viver condenados a sermos zumbis do sistema.


O que você acha, Domenico?


Claro que temos muito mais possibilidades que essas citadas, de nos manifestarmos contra todo esse abuso e golpe político, mas tínhamos que estar unidos em valores. Porém, temos uma sociedade dividida no que diz respeito aos ideais e à moral. Mas, pelo que me consta, os valores dos hindus e muçulmanos também eram díspares e geraram muitas brigas internas, e, mesmo assim, Gandhi conseguiu, por um nobre ideal, uni-los contra os opressores estrangeiros. Quem sabe em sete dias todos consigamos entender que o Ditador Fascista nem mesmo precisa assumir o poder para que a gente una nossos ideais para expulsar o opressor do cargo almejado? #EleNão #EleNunca. Infelizmente, agora o EleNão está no poder. Ou pior, os EUA estão no comando. Diante dos fatos que estamos vivenciando, percebi uma história se repetindo.

Ao ler seu livro sobre a Não Violência entendi que tal estratégia usada por Gandhi na intenção de uma revolução anticolonialista migrou da indignação moral causada por um fato real para uma manipulação sem limites com cenas e notícias falsas, sugestivas e profundamente comoventes. E tal estratégia passa, então, a fazer parte do manual estadudinense de guerra psicológica, e usada pela extrema direita mundial no intuíto de organizar golpes de estado (p. 281).


Um exemplo são as fake news que circularam no Brasil durante as eleições de 2018. Quando aconteceu o advento da facada “recebida” por Bolsonaro, pensei nessas imagens como uma manipulação estratégica, pois estava começando a ler seu livro e fiz tais associações. Acharam que eu estava comparando Gandhi com Bolsonaro. Aqui deixo claro, eu falava da estratégia. É como se você, ao escrever este livro, ditasse caminhos para o Brasil, mas os dois lados, fascistas e pró-democráticos leram. No entanto, não sabemos, até então, qual estratégia deu certo, já que todos saíram perdendo. Ás vezes se perde quando se ganha. Sempre é possível ver pela ótica de que todos nós estamos nos afundando no mesmo buraco, e que ainda dá tempo de usar, pra escalar, a mesma ferramenta que usamos pra cavar. As redes sociais.


Formou-se, então, o que vc denominou de "luta realisticamente não violenta" (p. 276-277), onde a força da verdade se transformou numa manipulação inédita e temível. Depois você falou da guerra midiática e citou Marx: o controle dos "meios de produção intelectual" é um momento essêncial da política. Com o advento da internet, mais precisamente das redes sociais, as imagens verdadeiras, parcialmente verdadeiras e falsas passaram a produzir indignação moral em grande escala e se torna um grande instrumento de desestabilização, uma nova arma de ataque a liberdade de expressão.


Em outras palavras, diria que virou uma super ferramenta de controle da opinião de massa. Diria até que estamos diante de um genocídio onde as mentes são os alvos. Forma-se, assim, um exército de robôs hipnotizados recebendo visões distorcidas dos fatos, lutando por mentiras e acreditando em realidades adulteradas.


Sobre o capítulo "Utopia de um mundo sem poder e sem violência" (p. 286-287), às vezes tenho a sensação de estarmos sendo coadjuvantes no sonho de um maluco distópico. Por isso me identifiquei muito quando você falou em lutar contra as guerras; em acreditar que o mal possa ser superado e que melhores relações humanas são possíveis; quando você citou a onicracia, onde todos comandam e na verdade ninguém comanda; só de pensar em não haver distinção entre governados e governantes, me dá a sensação de que estamos criando, simultaneamente, a materialização da utopia; identifiquei-me quando você novamente citou Marx e sua espera pela extinção do Estado no sentido político atual. Recentemente um ator brasileiro se autodeproclamou presidente do Brasil, e isso me fez refletir sobre a possibilidade de todos fazermos o mesmo: nos autoproclamar presidentes, a construirmos coletivamente uma realidade onde cada um governa a si mesmo e, ao mesmo tempo, cooperam para que todos igualmente assumam o próprio poder pessoal. Esse sonho utópico pareceu ser possível de repente. Não sei quais caminhos percorrer, nem como traçar um mapa para tornar esse sonho realidade, mas penso que esse poderia ser um sonho universal.


Não sei como traçar metas, nem como criar possibilidades contundentes para que uma realidade melhor se manifeste. Também não sei quais as principais raízes da violência. Se soubesse, talvez eu começasse por erradicá-las. E talvez começar por erradicar a violência que há em nós seja a primeira linha desse roteiro. Inspirar-se na alegria de viver e simplesmente assumi-la.


Que assim seja, porque assim é!


A revolução contra a opressão não é violência, é raiva justa e necessária; apoio Gandhi por isso, mesmo com toda violência nas entrelinhas da não violência, e me inspiro em sua coragem e ousadia. Claro que me indignei com o machismo claramente exibido no filme já citado, e não compactuo com todos os seus atos, e nem quero perder tempo em justificá-los, pois, para machismo e misoginia, a única justificativa é a ignorância. Mas somos ignorantes em tantos quesitos, não é mesmo?


E nem por isso tenho que votar em candidatos a representantes ignorantes que cultuam valores como fascismo, intolerância, homofobia, misoginia, machismo, violência, porte de armas para crianças, racismo, etc.; quem dera o Brasil inteiro lutasse pela democracia, o respeito à diversidade e o direito à vida.


Por isso grito aos quatro ventos e que voe longe: #EleNão #LulaLivre.


Bem, não adiantou gritar aos quatro ventos


Mas, continuando, na página 294, o que vc quis dizer com "encolhimento da universalidade"? Engraçado como esse termo gera tantas imagens, não é? Na mesma página você diz que "em nome da democracia e da paz, travam-se guerras homéricas, já que era preciso liquidar ou deixar inofensivos os inimigos mortais da democracia!"


Aqui no Brasil aconteceu algo parecido, lutamos pela democracia e no advento de nossa infeliz derrota hostilizamos os mínions antidemocratas. Nós agimos com armas tão letais quanto a de nossos opositores. A violência invisível. A de nos aliviar ao ver que ao menos nossa intuição estava certa. Mas e quanto à distopia que se apresenta? O quê realmente a criou? Nosso medo ou nossa revolta?


É tudo uma questão de buscarmos juntos melhores perspectivas para o todo, não só para o nosso umbigo. Contudo, se raramente fazemos isso no nosso nicho, seria, então, uma utopia a insurgência de uma luta coletiva pela preservação do meio ambiente, pela elevação do caráter, pela igualdade social, seja qual for o âmbito desta, enfim, pela felicidade global! Caminhamos cercados e aprisionados por ideais egoicos e muitas vezes irresponsáveis. Acreditamos em mentiras inventadas e vamos vivendo como marionetes delas, cada um na sua esfera de crença e valores. E assim vamos. Ora cavando buracos e sendo mártires do destino, ora cocriando as mais altas escaladas. Tornamo-nos, então, heróis da cocriação. Basta enxergarmos a escolha que mais nos atrai e agirmos em consonância com este caminho. Somos muitos, mas somos um!


E assim finalizo essa carta agradecendo pelas reflexões que você me proporcionou e por incitar minha curiosidade em ler Desobediência Civil.


Lisiane Queiroz


 

CARTA AO AUTOR


De: Louise Lucena

Para: Teixeira Coelho

Brasília, 08 de outubro de 2018.


Olá, Teixeira!


Boa noite.


Ler o seu livro, Guerras Culturais (Ed.Iluminuras, 2000), em momento tão ímpar da nossa sociedade brasileira me trouxe algumas reflexões. Sua análise e crítica à sociedade e cultura brasileiras, apesar de justificativa lógica e argumentos coerentes, em alguns aspectos, no tocante ao povo brasileiro, soaram-me ingênuas. Digo isso porque, a meu ver, o livro traz imagens estereotipadas de nossa população e, talvez, até certa incompreensão a respeito de algumas culturas, como a negra e a indígena, que também são responsáveis e influentes pelas características e constituição de nossa cultura e país. Por exemplo, ainda na introdução (p. 7-8), ao falar sobre o extermínio da população judaica durante a segunda guerra mundial, nos silenciamos sobre o holocausto dos congoleses em que mais de 10 milhões de pessoas foram mortos por racismo através do rei belga Leopoldo II, no início do século XX. Não refletimos sobre as marcas e características do racismo em nosso país e, consequentemente, ao falarmos sobre violência urbana, acabamos por imaginar que “o assassinato brutal e gratuito da vítima, uma vez conseguido o objetivo [...],explica-se apenas com o desprezo absoluto pela vida humana (a do outro, da vítima, mas também a do próprio agressor), o que por sua vez significa não só uma indiferença total à ideia de civilização, de cultura, como o desconhecimento mesmo da ideia de homem e humanidade”. (p.7, grifo e itálico meus). Em seguida, a justificativa que você estabelece para tal fenômeno continua ainda a margear a profundidade da questão que, para mim, se estabelece a partir do genocídio da população negra e indígena brasileira, praticado através do racismo e do preconceito social. Aí também podemos incluir outras categorias, ditas minorias, que no discurso e papel são tidas como seres humanos e cidadãos, mas que na prática e nas entrelinhas de nossa sociedade são destituídos de toda a sua humanidade. Então, pergunto-lhe, sobre que civilização, cultura e humanidade estamos falando? Em qual modelo, padrão social “evoluído” estamos nos baseando? Para mim, as perguntas e as respostas sobre as questões apresentadas no livro vão mais além da zona de discussão estabelecida. Estas, em minha opinião, ainda permanecem a maior parte do tempo dentro da zona estabelecida pelo modelo social hetero capitalista patriarcal hegemônico, assim como discutido e apresentado pela decolonialidade. E por mais que esse movimento decolonial tenha sido estabelecido apenas após a publicação do livro, suas ideias e inspirações já vêm do pós-colonialismo e de movimentos sociais datados desde o início do século XX.


O livro inicia falando sobre as décadas de 60 e 70, que trouxeram consigo muitos levantes, protestos e questionamentos a respeito das estruturas, crenças e paradigmas sociais do ocidente. E em um comparativo com os jovens da atualidade (o livro foi publicado em 2000, no início do século XXI), os de agora seriam obsoletos, destituídos de ideal para suas lutas. No entanto, nesse período, dentro das favelas e guetos urbanos da América Latina, o movimento Hip Hop estava em pleno vapor, não apenas disseminando uma estética própria, mas desenvolvendo uma ideologia de empoderamento social e político importantíssimo para os movimentos sociais que vieram durante esse período, junto com a redemocratização de muitos Estados – saídos de ditaduras forjadas e financiadas pelo imperialismo americano, vivendo os anos iniciais da globalização, internet e tecnologias, dentre outros fenômenos locais e mundiais.


Em Palavra, poesia, democracia, na parte de Imaginários Contemporâneos, ao falar sobre o não dizer dizendo e o fazer-se entender para não se fazer entender – referente à comunicação, você me fez perceber como a construção da linguagem e a forma como nos comunicamos exerce papel fundamental na manutenção e articulação das estruturas sociais. Também me fez refletir sobre a língua de um povo (ao fazer parte de sua construção cultural e características singulares), em como carrega consigo – sendo atravessada pelos signos, dogmas e crenças sociais, a tradição e valores dessa cultura e sociedade. Pode parecer óbvia essa afirmativa, só que não. Justamente porque, enquanto povo oprimido, convidado a permanecer no subjugo de marajás, pensar sobre ancestralidade (história), política, cultura, pode ser bastante perigoso e violento. Sendo assim, diante de um Estado criado na base da violência e do medo, através de hierarquias de poder, muitas verdades são veladas, silenciadas e convidadas fortemente ao esquecimento coletivo.


Penso que o português do Brasil é diferente de todos os outros países de língua portuguesa, e que, apesar de haver semelhanças, a semântica, escrita e a operacionalização da comunicação ocorrem de forma distinta em cada país. No capítulo em questão, e a partir de algumas leituras dentro do feminismo negro e sobre relações étnico-raciais, percebo que o português do Brasil silencia e invisibiliza boa parte da sua história, ao mesmo tempo em que a revela. O exemplo que você traz sobre a palavra concubina, por exemplo, nos revela o que há nas entrelinhas entre o dito e o não dito que vem junto com a palavra, como o fato de não haver registro masculino para o termo ou ainda os sinônimos dela que, se colocarmos em construções de frases, substituindo-a por um de seus sinônimos, sugeridos no texto, nos traz todo o peso e a violência que ela carrega.


Lélia Gonzalez (expoente da intelectualidade negra brasileira, principalmente durante as décadas de 70 e 80, e que atuou militantemente – com relevância nacional e internacional- sobre a questão negra nas Américas) em seus textos, ao falar sobre racismo e sexismo no Brasil e a formação étnico racial nas Américas, apresenta os conceitos de “pretoguês” e “Améfrica Ladina” a partir de um jogo de palavras que desnuda e disputa política e ideologicamente o espaço da formação/construção da cultura na América através de uma perspectiva afroameríndia. No entanto, o diálogo e reflexão que ela estabeleceu diante da língua portuguesa recebeu o peso da interseccionalidade, inserida não só em uma questão de violência e hierarquia dentro da categoria de gênero, classe e étnico-racial, mas também de sua própria experiência de vida.


Mais à frente, na terceira parte do livro, no capítulo que trata sobre Arte pública, espaços públicos e valores urbanos, você traz logo de cara que “[...] para aqueles que se ocupam de cultura política e, em última instância, para todo aquele que é, quer ser ou pretende continuar sendo um cidadão [...]" (p. 103). Como assim quer ser ou pretende? Isso não é uma escolha e nem deveria ser. Nessa parte do livro, a questão gira em torno do conceito de arte e cultura, sua produção, fruição e valores sociais que passam pela formação do sujeito e seu nível de erudição. Mas como a palavra já traz, isso faz parte de um recorte privilegiado social, que traz status e diferenciação de classes e identidade. Depois, na página 115, você afirma que “a arte, porém, ainda é um enigma social para este país, e isto vale tanto para a população carente e inculta quanto para as elites, das econômicas ás acadêmicas”. Aqui os estereótipos sociais se evidenciam e demonstram o grande mito que temos a respeito de nossa sociedade. Mito de que a população mais carente é inculta, sendo que isso depende da perspectiva que se olha e se entende arte, assim como também se constitui mito partir da perspectiva que a elite brasileira é culta por ter acesso a informação. E, além de tudo isso, mito de que arte erudita e contemporânea só se produz e recebe seu devido valor na Europa por conta do tipo de educação e consumo de arte e cultura supostamente diferenciado que possuem. Bem, penso que se a Europa e os EUA não tivessem roubado e oprimido tanto os países ditos hoje de terceiro mundo ou em desenvolvimento, as coisas seriam no mínimo muito diferentes do que são, e que se a base para a análise e entendimento de culturas distintas e singulares não fosse sua própria crença e cultura, veríamos que essa verdade e realidade é relativa, construída tendenciosamente para benefício e privilégio de uma camada específica social. E que não se altera, porque seu objetivo é exatamente este, trazer status e diferenciação social.


Na parte de Cultura e Política Cultural, você aborda a temática da cultura e da educação mais uma vez, só que no que tange a formação de conhecimento, identificando problemas e propondo soluções a respeito. A análise se dá ignorando esses outros aspectos interseccionais (gênero, raça...) tão importantes para uma análise mais consciente sobre as temáticas abordadas. Existe certa universalização do sujeito e da sociedade, como se todos nós partíssemos do mesmo ponto e não existissem privilégios sociais (característica de sistemas coloniais) e estruturais que criam linhas abissais e rachaduras dentro da ideologia democrática capitalista ocidental e tudo fosse uma questão de escolha, burrice ou erro e incompetência administrativa e política tanto por parte do Estado quanto social. Percebi em sua escrita algo que com frequência vejo naqueles intelectuais da elite brasileira: formação intelectual made in Europa/EUA, com desenvolvimento do pensamento crítico sobre a sociedade brasileira a partir da perspectiva e realidade estrangeiras, sem muito conhecimento e profundidade sobre a cultura e produção de conhecimento nacional e da América Latina a partir de uma perspectiva interna nossa. Ou até mesmo sem levar em consideração (será?) outras perspectivas. O que leva, a meu ver, à produção de uma intelectualidade “cotó”, míope sobre nossa própria identidade e país. Acabamos por pensar no povo brasileiro de maneira paternalista, como se o povo fosse demenciado, infantilóide, aculturado, até mesmo ignorante. Será que ignorante não somos nós a respeito do “Outro” e de nós mesmos?!

Pergunto-lhe até que ponto somos vítimas e algozes conosco quando não nos incluímos no próprio escopo de análise e crítica social. Nós, latinos, produzimos muito e somos extremamente ricos, abundantes e capazes na produção de conhecimento, tecnologia, cultura, arte e desenvolvimento social, mas, ao mesmo tempo, completamente ignorantes de si. Os capítulos de seu livro trazem temas e conteúdos interessantes, que até me estimularam a curiosidade e reflexão sobre as temáticas abordadas, mas ao mesmo tempo me mantiveram ignorante a respeito de nós mesmos ao tratar desses assuntos com referenciais europeus e norte-americanos que, a meu ver, constituem uma prática de formação, manutenção e dominação socioideológica desde o período colonial. Nada contra tê-los em se tratando de uma escolha consciente na realidade. Mas gostaria de saber se isso aconteceu por: a) uma escolha estética consciente diante de outras variantes a esta; b) falta de conhecimento de outras linhas referentes às temáticas abordadas no livro; c) questão de princípio e formação políticos-ideológicos; d) nenhuma das anteriores? Enfim, por quê?


Desculpe-me se pareço ofensiva, mas o livro me trouxe a sensação de que a Europa era “perfeita” e deveríamos seguir os seus passos! E talvez até essa seja a sua visão mesmo sobre isso…não sei. Tudo bem que também pode ser apenas a minha sensação e não a sua intenção. Para mim, no fim das contas a questão é que isso mexe com o nosso emocional nos trazendo a sensação de que não somos capazes, que somos inferiores e que a grama do vizinho sempre cresce mais verde quando, sinceramente, não acredito que isso seja verdade. Não acredito nesse sistema mundo moderno ocidental como igualitário a todos, no sentido meritocrático e de trazer e proporcionar oportunidades a todos. É cansativa a constante comparação dos ditos terceiros mundos com os primeiros, como se esses últimos fossem exemplo para alguma coisa quando, na verdade, é por causa deles que os terceiros mundos ainda não deixaram de ser classificados dessa maneira.


Em Fazer política cultural hoje é fazer política cultural para a indústria da comunicação, você afirma: “Comentaristas e narradores das partidas não viam o que se desenrolava sob seus olhos, mas diziam o que conceitos e preconceitos estabelecidos de longa data os mandavam dizer” (p. 95). Nessa mesma parte do livro, você ainda traz questões sobre a autoestima e autoimagem do brasileiro, num misto de crítica e análise que, no frigir dos ovos, trata-nos como grandes alienados. Bom, concordo, compreendo e foi de grande aprendizado ler o que foi escrito sobre cultura e política cultural, no entanto, e mais uma vez, analisar os nossos problemas de uma perspectiva única acadêmica e elitista, não ajuda muito a termos uma visão abrangente sobre os nossos reais problemas. Continua sendo uma visão paternalista sobre uma sociedade que pensa por si e sabe o que quer. E, além disso, podemos falar, pensar, escrever, denunciar milhares de possíveis entraves e causas para os nossos problemas enquanto nação, porém, se não voltarmos à origem da formação desse país, ainda no período da colonização, e não analisarmos criticamente sua constituição, a base de construção e estrutura que norteia nossa sociedade, torna-se a mesma coisa que correr em círculo querendo chegar a algum ponto que não o início ou o nosso próprio umbigo.


Não me leve a mal, todos somos preconceituosos em algumas instâncias, mas falar de pichação como se isso fosse apenas vandalismo, sem analisar a denúncia social e política, além de toda articulação, inteligência e engajamento que esses pichadores possuem, demonstra total falta de conhecimento e interesse de diálogo com camadas outras que não a sua própria. Não é apenas uma questão de gosto e ponto de vista, é muito mais do que isso; fere o direito à arte e à diferença. Ora, se estamos a falar sobre cultura, esse entendimento deveria ser claro; se estamos a falar sobre arte, também. Ainda mais se trata-se de arte política e contemporânea. Basta analisarmos dentro da história da arte todos aqueles artistas que foram à frente de seu tempo que em um primeiro momento foram recebidos com chuva de críticas e negação social pelo estranhamento e reflexão a respeito da cultura, da sociedade e do próprio fazer artístico que trouxeram. Não faltam nomes para essa categoria, como o próprio Duchamp, no Brasil a arte concretista e o neoconcretismo com os móbiles de Lygia Clark, o movimento Tropicália na música e até mesmo o rap dos Racionais Mc's. A arte urbana, até a quebra de paradigmas das obras de Banksy na Inglaterra também eram consideradas pichações; eram destruídas perseguidas e vistas com preconceito nas ruas, assim como os pichadores e a poluição visual vinda da publicidade e da própria estrutura caótica com que muitos grandes centros urbanos foram criados e desenvolvidos. A publicidade é autorizada e no entanto causa tanta poluição e sujeira visual quanto as pichações. No entanto, uma obedece às leis do mercado e econômica, por isso é muito bem vinda dentro de uma sociedade capitalista; já outra denuncia o estado de exclusão e exceção social, sendo considerada criminosa. Ambas fazem parte do todo, como uma espécie de antítese da outra, como elementos complementares e responsáveis uns pela existência do outro.


Cada vez mais acredito que precisamos nos esforçar para dialogar com o outro, enxergando nele a nós mesmos, no sentido de humanidade, para entendermos as nossas reais necessidades e potencialidades. Para podermos nos compreender e aceitar nossas diferenças, mas nos entendendo como um coletivo pertencente a um todo. Não dá para falar de cultura, política e todas essas “guerrilhas” sem fazer uma autocrítica ao mesmo tempo. Uma amiga uma vez me disse que “a mesma mão que possui um dedo apontando para o outro, possui três apontando para si mesmo!”


Há quem vá ler o livro e, diante das minhas críticas, dizer que seu livro é um pouco mais antigo do que o furor das questões tão atuais e emergenciais sobre racismo e preconceito que trago no bojo das minhas críticas ao seu material e que, por isso, essas questões não são levadas em consideração no livro com a relevância que possuem por se constituírem, em grande parte, na base de todos os problemas, situações e análises apresentados pelo texto. No entanto, isso apenas revela como a estrutura social se apresenta, mesmo quando crítica de si mesma, “criticando sem querer criticar”, dizendo sem dizer ou se fazendo entender da forma como melhor convém, sem alteração de estrutura ou privilégio social, configurando, assim, uma alienação desejada para a manutenção do sistema enquanto inventamos justificativas para analisar os problemas reais que temos.


As Guerrilhas Culturais têm suas origens em questões muito mais profundas e complexas do que as questões administrativas, funcionais e conceituais de uma única perspectiva a respeito da arte, da cultura, da educação e da história oficiais que os Estados e sistema mundo moderno heteropatriarcal ocidental nos fazem crer ideologicamente.


Ademais, gostaria de agradecer por me proporcionar as reflexões que tive a respeito do conteúdo de seu livro, sobre cultura, política e formação social. Veio muito a calhar diante do transe coletivo, com discurso de ódio e violência que vivemos no momento atual do país, numa ode contra o globalismo, com a justificativa de transformar o país em algo melhor a partir do extermínio da diferença e das conquistas e avanços sociais devido à crença ideológica conservadora que pretende manter seus privilégios sociais construídos culturalmente em nossa história em detrimento da opressão e extermínio do outro, do que não é semelhante a si.


Obrigada e até uma próxima oportunidade


Louise Lucena


 

CARTA AO AUTOR


Brasília, 30 de setembro de 2018.


Prezado Robert Muchembled,


Espero que esteja bem. Pesquisei alguns dados sobre sua vida e vi que você nasceu em 04 de março de 1944, um ano depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Hoje você tem 75 anos de idade. É historiador Francês e professor de História moderna na Universidade Paris 13. Você é do signo de peixes, o mesmo que o meu. Você acredita que os contextos de vida vão além das tendências astrológicas? E que o contexto em que vivemos, tais como, social, cultural, econômico, político e histórico podem reger nosso comportamento e nossa relação com o mundo? Pensando nisso, o período de seu nascimento foi uma época marcada pelo fim da guerra e sua primeira infância vivida logo no pós-guerra. Fico pensando como isso deve ter influenciado sua vida e a sua pesquisa, a qual discute as atitudes em relação à violência.


Em seu livro Uma história da violência: do final da Idade Média aos nossos dias, publicado em 2014, pela editora EDIÇÕES 70, em Portugal, você trouxe esse recorte histórico da idade Média aos nossos dias sobre a Europa Ocidental do Século XII ao século XXI, em especifico sobre a violência brutal na cidade de Arthois entre 1440 e 1600. Foi me revelado, como leitor, um passado doloroso para muitas vítimas e, ao mesmo tempo, um reflexo dos tempos de hoje, em diferentes formas e nuances. Vejo que você estudou a fundo o tema da violência. Vi que você se utilizou de muitas pesquisas para abordar o assunto com um recorte detalhado do tema. Fiquei surpreso com as histórias de brutalidade relatadas em seu livro e como era banal matar. Você aborda uma longa história da violência e defende que ela foi diminuindo ao longo dos tempos da esfera pública para a esfera domiciliar, como a criação dos romances literários, novelas, filmes, jogos online e seriados policiais.


O que me chamou atenção nessa história da violência é que os homens entre 20 e 30 anos são os mais violentos. Pouco são os casos documentados de violências praticados por mulheres, o que não deixa de ser uma possibilidade, segundo as histórias relatadas. Mas é um traço cultural forte, apolíneo, do patriarcado. Nesse sentido, talvez o mais bizarro na atualidade seja algumas pessoas não terem a noção do quanto elas podem estar sendo violentas consigo mesmas, com o outro de forma sutil, com comportamentos impregnados na cultura ocidental, por exemplo, o medo e a culpa que parecem estar permeado nessa longa história. Falta o quê em nossa educação? Uma educação que valorize ensinamentos baseados na relação com as emoções e com outro? Que nos leve a um caminho espiritual de autoconhecimento?

Dizem que “bandido bom é bandido morto”, tem político que fala isso aqui no Brasil e, pior, tem gente que compra a ideia. Seria uma projeção do ódio e da raiva consequentes do ressentimento base de nossas sociedades? Há pessoas que projetam esse conteúdo em figuras politicas que dizem querer mudança rápida à nação. Que se utilizam dos meios de comunicação e da religião para manipular informações e colonizar a “família brasileira”, os fiéis, com ideias de progresso, bem estar, cura, civilidade por meio de valores morais e religiosos. Sabemos que a violência, de tão praticada, vai se tornando comum, ou seja, invisível, ela passa despercebida a olho nu. Essa forma de violência para mim pode adoecer uma sociedade, pois carrega a potência de guerra. A violência fica cara.


Para explicar essa pulsão de morte, você comenta que:


Este longo percurso Ocidental coloca um grande enigma em relação à violência da nossa espécie: por que razão se revela frequentemente mais cruel e mais devastadora do que a dos próprios animais, como se mostrou nas duas grandes guerras mundiais? Pensadores especialistas de etologia, como Konrad Lorenz, ou de psicanálise, como Erich Fromm, não hesitam em afirmar que isto é próprio do homem. O primeiro fala de uma paixão inata ligada à sua natureza animal, o segundo de um instinto de destruição enraizado em si. Freud imagina-o impelido ao mesmo tempo por uma pulsão de vida e por uma pulsão de morte, prevalecendo finalmente esta, uma vez que Thanatos acaba por vencer Eros (MUCHEMBLED, 2008, p. 411).


Ao refletir sobre este trecho e a situação política e cultural do Brasil, penso que uma das maiores violência em relação ao povo seja essa falta de investimento na educação, bem como a falta de uma educação que propicie autonomia. Pois, assim como o homem pode estar impelido ao mesmo tempo a essas duas pulsões, ele pode também influenciar negativamente seu meio. Nesse sentido, você considera que o fato de pensar ou veicular noticias falsas ou projetar sentimentos diversos em figuras politicas, como por exemplo, o ódio, é uma forma de violência sutil consigo mesmo e com o meio em que vive que pode alimentar uma barbárie? Sabemos que os meios de comunicação social, assim como os costumes, a cultura e s instituições jurídicas produzem e moldam as relações e o corpo na sociedade, e até nossos padrões de comportamento desde a infância à idade adulta. Como você vê a questão da canalização do sentimento de agressividade e de raiva como um processo educativo na sociedade em que vivemos hoje?


Voltando à história da violência, tenho entendido que seu objetivo era mostrar que a violência vem se transformando ao longo do tempo, da barbárie para uma diminuição considerável, através de estratégias como as leis jurídicas e legislativas. Expressando isso, você cita os termos: “civilização dos costumes”, “civilização das ordenações”, que significam inicialmente uma adequação social dos guerreiros do exército e da população para uma cultura da não violência. A sociedade passou a orientá-los aos bons costumes e às boas maneiras nas cidades de Auvergne ou Gévaudan, na França, por meio de valores religiosos e aristocráticos (p. 38-39). Mas esse modo de pensar as civilizações parece negar as pulsões humanas de agressividade. E que até hoje essas instancias do estado são falhas em criar decretos sem o consentimento da população em geral.


Passando por este ponto de vista, a violência na Idade Média passa a ser sublimada por leis, proibições e uma educação coercitiva. Na tentativa de amenizar e controlar os impulsos e a barbárie dos homens diante de uma época onde eram tolerados os excessos dos adultos homicidas (p.167). As primeiras formas de punição eram baseadas em valores religiosos, mas isso foi mudando para medidas terrenas:

[...] o espetáculo legal põe o sofrimento físico à distância das multidões que atrai e a liga intensamente ao direito exclusivo de punição real inspirada por Deus. Depois, a suavização das formas públicas de execução capital verificada por toda a Europa a partir de meados do Século XVII, cerca de cem anos antes das críticas dos filósofos das Luzes, indica uma nova aceleração do processo de enquadramento da brutalidade sanguinária. Através das formas cambiantes da punição judiciária pública, as autoridades centrais, os intermediários locais e as populações não param de dialogar sobre o valor que é necessário atribuir à vida humana. Inventam conjuntamente os meios de controlar o potencial homicida explosivo da juventude masculina e limitar os efeitos desastrosos da lubricidade feminina fora do casamento (MUCHEMBLED, 2008, p. 169-170).


Inspirados em Deus, os reis e os juristas, passam a justificar a punição por meio de valores religiosos baseados em histórias bíblicas, como por exemplo, a de Caim e Abel. É como se, em nome de Deus, validassem ações jurídicas para a execução do enforcamento, por exemplo. Muitos morreram brutalmente com os ossos esmagados, tal morte era baseada na crença de que, no dia do juízo final, a alma da pessoa não teria como ressuscitar. Assim como fizeram na suíça e na Romênia, as bruxas foram queimadas na fogueira, acreditando-se que o fantasma não voltasse a possuir aquele corpo. Os antigos valores revelam um verdadeiro tabu de sangue.


Eu vi que a violência pública era como um show da morte. Uma forma de mostrar às pessoas que os assassinos e ladrões erraram e se as pessoas fizessem o mesmo, seriam humilhadas em público. Matar para gerar medo nos vivos era o pensamento da época (p. 185 a 191). Mas ao longo do tempo foi surgindo uma preocupação coletiva em relação à espetacularização da violência pública. Após essa realidade sangrenta de midiatização da violência a população passa a construir outros valores em relação à vida, para questionar a normalidade da punição em público. Cria-se outras leis na tentativa de superar o problema da violência. Durante séculos passa-se a pensar em diversos formatos coercitivos, por exemplo: “[...] pegar o preço, muito pesado para um pequeno trabalhador, mas o fardo duplica-se pelos importantes custos da prisão, de perda da receita do dinheiro do trabalhador [...]” (MUCHEMBLED, 2008, p. 150).


Sabemos que ainda hoje existem leis e benefícios que favorecem determinadas classes sociais, por exemplo, os deputados que têm um teto altíssimo de aposentadoria pelo INSS. Caro autor, você considera que as atuais leis pelo mundo têm privilegiado algumas classes em detrimento de outras, causando uma espécie de violência de longo prazo em relação às classes desfavorecidas e às pessoas mais velhas que passam a vida lutando pelos seus direitos? A desigualdade de direitos e deveres seria ainda uma forma de violência que de tão comum se tornou invisível socialmente diante do sistema capitalista?


Na Europa de 1520, houve o êxodo rural e nele havia traços de violência por conta do crescimento populacional e da divisão da renda. A partir disso, você comenta que desenvolveu uma nova engrenagem social:


A marginalidade torna-se um fenómeno de massa e angustiante. As autoridades procuram, sem grande sucesso lutar contra o pauperismo, em pleno crescimento, pois a miséria conduz os jovens desenraizados sem trabalho – entre os aldeãos – à mendicidade e à delinquência. O ciclo infernal começa pelo roubo para se alimentarem (MUCHEMBLED, 2008, p. 176).


Esse acontecimento histórico se mostra em similaridade com a crise dos dias de hoje. Com o inicio do processo de impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff em 2015, foi armado o que muitos chamam de um golpe. Este acontecimento revelou uma crise politica em geral e o ressurgimento de violência militar em relação à população que se opôs às manifestações a favor do impeachment. Houve também uma veiculação crescente de noticias contra o governo que estava no poder, revelando um extremismo social. Talvez enraizado desde a ditatura militar até os dias de hoje. Este colapso na estrutura brasileira alinhada aos problemas políticos internacionais desvelou mais uma vez, os problemas do sistema capitalista, acompanhado do aumento da violência ilícita. Uma crise para além da economia que desestrutura direitos conquistados coletivamente. Assim, o período de 2015 a 2019 é marcado por diversos regressos visíveis e invisíveis.


O atual presidente apoia o a liberação do porte de armas de fogo para o “cidadão de bem” se proteger. Uma proposta que traz sérios riscos, pois revela mais uma vez a legitimação da violência. Entre a proteção e os riscos, o capitalismo busca território enquanto as pessoas padecem sob os modelos arcaicos.


Robert, você traz uma noção de bandidismo e de criminalidade que extrapolam a hierarquia social e a compreensão dela. Ainda hoje, lideres religioso buscam a expansão de seus valores produzindo informações duvidosas nos púlpitos e nas redes sociais. Tornando profano o coração dos fieis por meio de falsas mensagens. Falam de amor ao próximo ao mesmo tempo em que pedem apoio a políticos corruptos que defendem o uso de armas de fogo pela população civil.


A culpa e o medo seriam uma subjetividade estruturadora do poder? Pois o poder parece funcionar bem com a culpa, só que em saldo devedor para quem sofre suas consequências. Tem-se que pagar um alto preço por esta moeda. “Curam” para pedir oferta, ferem para então dar “atenção”. Inventam guerra espiritual para ritualizar a necessidade de paz e de comunhão. Ainda negam essa vida em função de outra melhor. Nesse sentido, você comenta que os maiores conflitos foram de responsabilidade da religião junto ao estado, num tempo marcado por revoltas populares e duelos da nobreza:


Esta era de furor e de violência sanguinária é, no entanto, de grandes mudanças políticas estruturais. O minucioso estudo dos conflitos religiosos tem muitas vezes ocultado um fenómeno positivo de grande importância: a extrema desorganização do continente induzida por uma incessante rivalidade entre Igrejas concorrentes e os príncipes ambiciosos esconde o forte aumento de procedimentos de unificação da civilização ocidental. A mais evidente é a gestão do Estado moderno. As suas duas formas antagónicas, cujos mecanismos evoluem e se aperfeiçoam sem parar ao longo dos confrontos, têm necessidade de controlar a agressividade dos seus indivíduos para melhor canalizar a dos seus exércitos para o domínio fundamental dos confrontos lícito com os inimigos (MUCHEMBLED, 2008, p.226).


Apesar de buscarmos reconstruir um país laico nesses últimos anos, ressurgem modelos arcaicos de governo e de religião que visam em nome de Deus tomar o poder numa tentativa de unificar um país tão diverso como o Brasil. Voltando silenciosamente a um tipo de ditatura invisível, a do pensamento e da liberdade de expressão. Querem enquadrar a diversidade religiosa e cultural do corpo, num quadro arcaico. Da mesma forma que a sociedade buscou por longos séculos evitar o uso de punições severas, como por exemplo, a crucificação e a tortura. Que foram comuns há cinco séculos e de tempos em tempos parecem ressurgir como modelo, assim como aconteceu na segunda guerra mundial com o holocausto na Alemanha nazista e na ditadura militar no Brasil, com as torturas. A ditadura militar brasileira foi um regime político em que os militares conduziram o país justificando o golpe, pela alegação de ameaça comunista no país, um mecanismo de autorização da violência por parte do exercito.


No decreto de lei-criminal de Felipe II em 1570 dizia: “Se as provas são insuficientes, mas existindo sérios indícios, contados como frações de provas, a tortura revela-se necessária para obter uma confissão. Torna-se também uma etapa importante do processo criminal a partir do século XV” (MUCHEMBLED, 2008, p. 182). Confessar os pecados para não ser crucificado. O sofrimento corporal como forma de adequação. A punição como forma de se obter informação. “(...) a dor permite atingir a verdade, obrigatoriamente revelada pelo corpo sofredor” (MUCHEMBLED, 2008, p. 184). Em 1780, Muyart de Vaouglans defendia o valor de que as penas corporais serviam para saúde da alma. (p. 184). Robert, você comenta que:


[...] o objeto inicial é seguramente aterrorizar os que não são tentados a não seguir os preceitos divinos de que o príncipe é o guardião. Ao demostrar o temível olho do rei está por todo lado, a dissuasão preventiva constitui igualmente um das principais missões atribuídas ao tenente da policia parisiense. [...] o recente estado moderno procura assustar tanto quanto pode, pois não tem os meios necessários para punir a maioria dos delinquentes que lhe escapa (MUCHEMBLED, 2008, p. 181).


Vejo este trecho como um reflexo das últimas manifestações de 2015 a 2018. A encenação da polícia, conciliada aos meios de comunicação, retratam a sinopse de um novo espetáculo político, que traz como tema a vigilância e a agressão física, uma “perseguição aos opositores”. Na cena da vida real, é criada uma ilusão onde os manifestantes que se opõe ao estado são considerados arruaceiros. No palco das manifestações, a polícia desce bala de borracha contra as pessoas em geral. Para tornar a realidade mais humilhante e real brincam de jogar sprays de pimenta em quem puder, afastando e ganhando vantagem sobre os numerosos corpos. A cultura do século XXI da violência legítima ressurge num Estado de medo, desconfiança e insegurança. A violência pública toma conta das casas, pelas TVs e celulares, toma conta dos corações.


O século XXI parece equivaler ao século XVII e XVIII, onde houve revoltas populares realizadas por camponeses e a população em geral que se opôs ao “estado das ordenações” – a era dos excessos nas cobranças de impostos por parte dos burocratas e reis. A transição da civilização dos costumes para a das ordenações foi uma tentativa de domesticar a violência. Essa época foi marcada pelo início da era industrial, o seio do sistema capitalista. E teve como caraterística as ações de reprimir, recusar e vigiar as expressões populares, por exemplo, o carnaval. O estado e a religião passaram a exercer seu poder em relação às revoltas e expressões populares. Pois estas expressões na Europa, principalmente na França do século XVII, eram revoltas contra a degradação das condições de vida e de exigências fiscais (p. 269). Assim, as relações de poder das elites, apesar de produzir discursos de igualdade contemporânea, continuaram a produzir uma sociedade que cresce a duas velocidades, isto é, em tempos diferentes (p. 272).


Robert, como parte do projeto de remontagem da obra coreográfica Pequeno Tratado de Violência Cotidianas, visitei espaços abandonados da cidade de Brasília, em específico a Ermida Dom Bosco; o espaço parece refletir um pouco dessa realidade da vigilância e da censura pelo olhar do corpo em público. Para relatar essas vibrações, compartilho as impressões do “dia da visita”:


A roda e o currículo, habitados pelo vazio da criança adulta A falta de sentido existencial e democrático, dá lugar à desconfiança. A fé nas pessoas murchou os corações, não há mais voos Nem brincadeira de nada. Um vazio farto de aparências cinzas Vigiar o que está exposto, aberto, rasgado, diante do céu Grande esquecimento Do olhar para dentro

A saída O espaço vazio sem margens solúveis para re-criar

A atenção tensa psíquica

Gera tenção, sem A O que há por trás dos olhos que observam?

Arte e vida Os corpos vibram Minimizam gestos e aumenta pulsão A mente do espaço gera des'confiança notada $entinelas passam e pausam, tempo em suspensão Olham como se estivessem em cena O corpo intenção

Medo e desejo são tocados pelo mesmo céu que nos beijam.

Meu caro, ao relatar esta experiência de convívio com esse espaço, lembro que você comenta em seu livro que a polícia foi organizada no século XIII pelos marechais da França para controle dos exércitos e depois para vigiar os delinquentes sem casa nos caminhos do reino (p.180). Organizam-se estratégias para conter a violência, uma adequação e reordenamento das massas, o estado produziu outros âmbitos. Me identifico com outro trecho de seu livro que me inspirou a encontrar um corpo curvado, ressentido, reprimido, na primeira cena do espetáculo Pequeno Tratado de Violências Cotidianas, que também me inspirou na produção deste registro artístico mencionado anteriormente. Foi uma cena desafiadora para encontrar um estado correspondente a este corpo. Mas esse trecho alimentou minha pesquisa de movimento e a construção do corpo:


A passagem da regulação da violência pelas famílias para um sistema controlado pelos Estados, mas também pelas Igrejas, realiza-se no quadro dos progressos da <<disciplina social>> [...]. O período é marcado por uma vaga de ordenações que visam limitar as ocasiões de pecado, ao proibir hábitos dissolutos, danças [...]. A vigilância dos comportamentos, particularmente os excessos cometidos pelos jovens masculinos, intensificam-se, tanto em terras protestantes como católicas. [...] Os filhos de boas famílias, alvo dos pedagogos dos dois campos e de uma vigilância moral acentuada, são envolvidos muito cedo. Educados de modo diferente do que no passado, foram também objeto de uma nova aprendizagem das relações sociáveis através de códigos de boas maneiras que desenvolvem o modelo do <<homem honesto>> [...]. (MUCHEMBLED, 2008, p. 43-44).


No referido espetáculo, somos como figuras que remetem à monarquia, à realeza, à burguesia, ao clero, e aos servos, deslocados para a contemporaneidade. Dançamos em círculo, iniciando em pé, este corpo que sente medo e que julga com o olhar. Um medo produzido socialmente pela mídia, pelo estado, um medo da tortura do passado e da tortura psicológica dos meios de informação. Vigiamos as ações uns dos outros. Essas ações são as danças feitas no centro do círculo que desejam denunciar a agressividade e a violência das relações humanas de poder.


Nas primeiras décadas do século XVI, o poder público passa a se transformar consideravelmente, surgem outras tentativas de controle da criminalidade e somente em 1650, mais de um século depois, começa-se a estabelecer um novo equilíbrio com uma justiça criminal mais eficaz em relação às pessoas e aos considerados “inúteis para o mundo”, tais como, os ladrões ou suicidas (p. 176-177). Durante um longo período dos anos de 1650 a 1950, a violência passa a ser “domesticada” por meio de uma forte vigilância:


[...] a fábrica ocidental distingue cada vez mais vigorosamente duas formas de violência, a legítima e a ilegítima. A primeira é indispensável para manter o espírito belicoso necessário à defesa da pátria e ao domínio de vastos territórios ultramarinos. A outra é considerada pelas autoridades e pelas pessoas estabelecidas como inquietante, perigosa, perturbadora da harmonia social. Ora, as duas estão intimamente ligadas a fenómenos idênticos de agressividade viril. Como desenvolver uma sem validar a aplicação da outra aos olhos de toda gente? (MUCHEMBLED, 2008, p. 271).


A partir das ideias de boa conduta e educação da alta classe, o estado parece repercutir um novo modelo de controle coletivo. Por meio dos exércitos e da polícia, passa a limitar o sujeito que representa ou expressa a agressividade em público. A gestão da brutalidade tem uma relação com as disciplinas impostas à sociedade comentada por Focault, como, por exemplo, os presídios como uma forma de punir e tornar os corpos dóceis, uma tática de causar submissão (p. 274). Assim como o olhar policial para o “suspeito delinquente” que o torna alvo de definições preconceituosas em relação à agressividade. Então essa noção de violência lícita por meio das ideias da classe e do estado passa a normalizar uma forma de agressão justificável para o controle social. Visões e padronizações culturais da ideia de corpo vão surgindo. Quais os impactos que a civilização dos costumes, das ordens e dos exércitos podem causar à sociedade e às gerações masculinas?


Então, o movimento ocidental impõe normas mais moderadas e a diminuição das execuções penais brutais, o estado passa a vigiar mais fortemente, criando novas leis em relação aos bens materiais. Dessa forma, a violência desloca-se da vida pública para as relações familiares. Há aumento dos homicídios e do infanticídio pelo fato de se construir uma ordenação moral, uma categorização dos gêneros sexuais e a inventividade social da adolescência (p. 177).


Nesse processo, passa então a surgir a figura do adolescente, a rapariga e o rapaz, como uma angústia complementar para sociedade. A idade em que os jovens passam a se diferenciar dos costumes e dos pensamentos adultos. As tensões entre gerações vão se tornando crescentes, assim como o infanticídio e o homicídio que acompanham os problemas familiares. A violência se expande para contextos mais fechados, do circulo social para os circulo das relações entre parentes, do centro da cidade para as casas. Passa-se a frear os rapazes e as raparigas envolvidos em sexo fora do casamento e excessos festivos, como o carnaval, por exemplo. Os jovens sofrem proibições, a comunidade passa também a transferir a sua responsabilidade punitiva e de apaziguamento da violência para as autoridades jurídicas que fazem respeitar as leis (p.177). Desse modo, você comenta também, que:


Com impulso da instituição jurídica passa lentamente do estatuto de linguagem coletivo normal produtora de relação social, que serve para validar as hierarquias de poder e as relações entre gerações ou sexos nas comunidades de base, ao de grande tabu. O Ocidente inventa, assim, a adolescência através de uma tutela simbólica reforçada em rapazes solteiros. O movimento completa os efeitos um novo sistema educativo destinado a enquadrar mais estreitamente uma idade que parece particularmente turbulenta, insubmissa e perigosa aos olhos dos poderes ou de pessoas instaladas. Até aqui pouco analisado, este aspecto <<civilização dos costumes>> visa limitar a agressividade <<natural>> das novas gerações masculinas, ao impor-lhes a proibição de assassinato com consentimento crescente dos adultos as sua paróquia (MUCHEMBLED, 2008, p. 11).


Ao longo da leitura venho percebendo que a instituição jurídica por meio da linguagem coletiva normaliza as relações sociais, tais relações são construídas a partir das relações de gênero e dos entendimentos de corpo. Surgem classificações de poder e hierarquias na sociedade. Essa nova categorização social provoca impactos na formação dos adolescentes em fase de vulnerabilidade. O enquadramento da idade juvenil, assim como a cisão entre adolescência e vida adulta, visa limitar e reprimir os impulsos de agressividade, desejo sexual e a expressão dos jovens em uma fase aflorada e vulnerável.


As instituições produtoras das relações sociais buscam demarcar as novas gerações, ao mesmo tempo tratando-a como uma parte imatura da população. Por volta do século XV, a religião católica e os pais passaram a lidar com os impulsos juvenis com o objetivo de catequizar, principalmente as pessoas iletradas; tal ação era para alertar sobre as “seduções diabólicas” (p.202-203); uma medida para adequar os que não “entraram na linha”, assim como os jesuítas colonizaram os povos indígenas no Brasil.


A violência que era banal transpassa para formatos midiáticos como os grandes jornais, revistas em quadrinhos, contos literários, caracterizando uma “forma de educação moral”. O entretenimento teve o papel de informar aquilo que não é legal. As narrativas que revelam a cultura viril dos séculos anteriores serviram de válvula de escape e em consonância colonizaram o imaginário. Para expressar esse tipo de aprendizado por meio da ficção sanguinária você comenta que:


A aprendizagem simbólica destes papéis opostos dá toda a importância ao romance negro. Este define igualmente a função do sexo fraco num universo dominando pelos valores viris ao proporcionar apenas uma escolha entre a vítima doce, maternal e frágil, normalmente loira, das paixões masculinas, e a venenosa mulher fatal, dura e morena, que leva ao crime e, depois, à decadência (MUCHEMBLED, 2008, p.334).


A transposição da violência brutal para a ficção deu lugar à aceitação do tabu do sangue brutal e conduziu o imaginário masculino a identificar a noção de sexo frágil por meio das narrativas negras. Esses escritos da época, ao mesmo tempo em que denunciaram os acontecimentos dos séculos passados, também reforçavam noções violentas, por exemplo, a ligação da imagem do negro ou agressivo ao que é “visto como demoníaco”, negativo, grotesco e violento. A produção de imaginários fictícios gerou cultura, pensamentos, preconceitos e formas de educação desfavoráveis.


Robert, o deslocamento da violência pública para os meios de comunicação social é chamado por você como sangue de tinta (p.336). Nesse sentido reflito como a cultura ocidental por meio da literatura, cinemas, jogos online, manifestações artísticas, dança, teatro, música, circo, meios de comunicação social e educacional podem não mais reforçar ou reprimir a agressividade, mas propor uma experiência pelo corpo que leve a ressignificação da violência?


Acredito que se faz necessário ampliar as reflexões sobre o corpo na sociedade. Pensar uma educação baseada no corpo, construída por meio da prática e do processo. Nesse sentido, o processo de composição da obra coreográfica e da videodança do projeto Pequeno Tratado de Violências Cotidianas foi um meio pelo qual pude experienciar vivências práticas que ajudam a pensar o corpo na sociedade. Uma delas parte de propostas em dança que ajudam a ampliar os cinco sentidos mais comuns, tais como, o tato, o paladar, a visão, a audição e o olfato. Ao levar a percepção para os sentidos do corpo, percebi uma forma de construir conhecimento cognitivo e de transmutar as tensões cotidianas, tais como o cansaço, valores sociais em relação ao corpo. Além disso, pude ampliar minha percepção corporal para um tipo de corpo vibrátil, onde a percepção intuitiva dos espaços abandonados ajudou a pensar as noções de violência que os espaços parecem falar ao corpo.


Por este viés, a experiência de estar nesses lugares me fez refletir que o corpo é um grande processo, um lugar de passagem e de finitude. O olho pela qual tudo percebe mesmo que nossa razão não perceba logo de cara. O corpo tem suas próprias razões que percebem o espaço de forma sutil. Tal abandono revelou uma violência “fina”, subjetiva e invisível, produtora de normalidade e esquecimento de obras, prédios de lazer, saúde, educação, como a ruína da UnB, em Brasília, o projeto nunca finalizado para a criação de uma escola de guerra.


Esse abandono da obra foi marcado pela crise do petróleo na década de 70. O esquecimento de prédios público parece ser o mesmo tipo de abandono do corpo na sociedade ocidental. A carne e o concreto vão além do consumismo desenfreando, são os próprios espelhos de uma sociedade do cansaço, farta de excessos, do tornar comum, igual, esterilizado, imunológico como diz o filosofo coreano Byung-chul Han.


A partir da pergunta “quem sou eu”? Na pesquisa do corpo na videodança gravada nas Ruínas da UnB, cheguei a algumas reflexões que serviram como inspiração para a construção do corpo no espaço:


De terno preto em meio ao concreto me sinto como o poder público decadente. Representado desde as construções sociais/políticas ao presídio real e metafórico. As ações corporais estão contidas, ordenadas e organizadas para o controle da agressividade. Com uma marreta na mão busco martelar as estruturas psíquicas de concreto, para dissolver as estruturas de poder impostas a esse corpo social.

Fazer buracos ou se colocar neles é reconhecer a si mesmo, dentro ou fora, como parte de um país que está no abandono. Essa também é uma atitude de contemplação daquilo que Somos. Uma maneira de se ver, sem máscaras. Um encontro entre o concreto e a subjetividade. Esse corpo se adapta, mescla não para se tornar invisível, mas para se tornar parte do todo. Desse modo, as brechas revelam os detalhes.

O ponto de vista das frestas como uma lente do real. O sentir de perto como deslocamento contemporâneo que tira o arreio da alta classe. O olhar para o centro do buraco é veracidade, tão rica e decadente. Se lembrar do corpo cansado e periférico. É descolonizar todo planalto central.

Da periferia para o centro ou do centro para periferia? Corpo permeável quer dançar (com). Para então desfazer os traços viris do percurso ocidental e por meio do corpo mídia expor a invisibilidade cotidiana.


Caro Robert, inicialmente ler seu livro foi um desafio; não imaginava que os antigos costumes eram tão sangrentos, mas vejo sua escrita para além de um aprendizado moral ou de imposição da culpa. Ela denuncia tais atos do passado e abre reflexões para o nosso próprio tempo. A partir desta carta pude desenvolver um olhar mais abrangente para os mecanismos da sociedade, bem como aos processos históricos e políticos que constituem o corpo. E várias crises políticas e econômicas durante essa história fizeram com que surgissem os mais variados atos de violência legítima e ilegítima. Tudo isso me leva a pensar em educação e abre espaço para refletir sobre meu papel enquanto pessoa que dança. Agradeço pela leitura de seu livro, pois ele me inspirou a pensar nas lógicas da sociedade, assim como criar danças que expressem e falem da violência, além de ampliar o olhar para além de mim mesmo.


Um forte abraço!


Rafael Alves


 

CARTA AO AUTOR


Brasília, 30 de setembro de 2018.


Estimado, Ashley Montagu


Você ainda não me conhece, mas me fazes companhia há alguns meses. Me chamo Thais Cordeiro, sou brasileira e uma jovem professora aspirante a artista. Eu não sei se você ainda contas os anos, mas estamos em 2018. E isso quer dizer que fazem 19 anos que partistes, mas não sei bem para onde. Bem, você faleceu e é bastante incômodo iniciar este diálogo, porque eu não sei se, de alguma forma, tu saberá desse contato. A verdade é que estamos conectados e eu tenho medo de pessoas falecidas. Sinto muito, eu não gostaria de ter medo, não sei o motivo de sua partida, mas sei que eu gostaria muito de ter lhe conhecido. Especulei a sua vida no Google, que é uma grande ferramenta virtual de busca, mas não obtive muitas informações. O Google me contou do brilhante acadêmico, antropólogo e humanista que fostes, Ashley. Tenho lido um dos livros que escrevestes, A natureza da agressividade humana, de 1978, publicado pela Zahar Editores no Rio de Janeiro, e é justamente por isso que estamos aqui.


Percebi que um de seus objetivos enquanto pensador e crítico foi orientar conhecimentos produzidos nas ciências sociais e naturais para o melhoramento da condição humana. Senti muita afinidade com o seu pensamento, senti também um forte desejo de ouvir o que foi falado nos demais livros.


Ashley, você inicia o livro com duas perguntas que logo me colocaram em um lugar não comum de leitura, e fiquei repetindo-as por vários dias: “O homem é violento por natureza ou a sociedade é que o faz assim?” e “homo sapiens: a espécie imperfeita?”.


Fui conduzida pela leitura de forma que entendi que a agressividade permeia a evolução humana, essa que apontou caminhos para a sobrevivência, estimulou a autoproteção, apontou para a caça, para as armas, primeiro para animais das demais espécies e há algum tempo apontamos para os nossos semelhantes. Pensando em agressividade humana como a externalização dos nossos sentimentos e que podemos acolhê-la, essa agressividade pode ser externalizada de forma simbólica, pode se dar em uma conversa equilibrada ou em uma atividade que demande esforço corporal. Com isso, por muito tempo eu confundi agressividade com violência, passei a não externar minhas sensações e sentimentos e fui corroída de dentro para fora. Enquanto aparento tranquilidade, a minha cabeça está um turbilhão de emoções e pensamentos, o que me gerou crises de ansiedade. Mas poderia ter desencadeado situações mais complexas como depressão, crise de pânico e tantas outras síndromes e transtornos. Quando acumulo percepções e sentimentos, coleciono sintomas emocionais e físicos quando não ajo com agressividade perante eles. Tal agressividade não diz respeito à violência, mas sim deixar fluir o que gera incômodos, liberamos o que causa angústia e liberamos sintomas psíquicos. Obrigada por me fazer ver enxergar que podemos ter sentimentos ruins, faz parte de quem somos, acolhemos e crescemos com isso. Ashley, fiquei me perguntando como perceber a agressividade da nossa mente, visto que parece ser algo tão primitivo. Passei a observar atitudes minhas e de pessoas próximas e busquei em minha memória situações diversas já vividas. Preciso confessar que tu tens razão, fazemos pequenas torturas com pessoas próximas, pequenas maldades para o outro e para si. Estamos em um estado tão caótico, com pouca referência, sinto que seja urgente olhar para si, assim como para o outro com compaixão, observar-se para não ferir ninguém. Isso é um exercício diário que tem preenchido de sentido a minha existência nas últimas semanas.


Sabe, penso que a nossa mente foi/é manipulada o tempo todo, não posso acreditar que seja da nossa natureza querer o mal de um semelhante, não é natural, é violento, uma vez que fazemos escolhas. Percebo que seja inato querer cuidar e proteger alguém da mesma espécie. Talvez eu seja romântica. Em minha pequena experiência como professora, percebo que muitos estudantes externalizam a agressividade e me questiono o que nós contribuímos parra o processo educacional de formação cidadã em um ser humano que está a desabrochar? Quando se defende a agressividade como algo inerente ao ser humano, tenho a impressão de que não somos mais do que dispositivos controlados por instintos herdados. Se isso fosse uma verdade, de fato, nosso futuro seria ainda mais cruel e sombrio. Ashley, tu deixas bastante claro ao longo de tua escrita que temos escolhas, eu acredito nelas. Ainda me arrisco a dizer que a imagem que temos do homem e de nós, será a imagem que influenciará em nossas atitudes individualmente e em coletivo.


Especulo que em nossa história da humanidade tenhamos vivenciado tantos horrores, alguns homens são realmente maus, mas só alguns. Entretanto, pensar em conceitos de bem e mal é ultrapassado, é tão relativo, pois tantos fatores influenciam em nossas percepções que não nos cabe etiquetar pessoas a partir dessa ótica dicotômica, o bem e o mal estão presentes em nós e manifestamos o que seja conveniente. Assim como não me cabe generalizar a crueldade, os prazeres sádicos, a tortura e ficar na superfície de que ela seja o nosso instinto ancestral. Penso que tomar como verdade tais extremos generalistas seja injusto.


Entender as diferenças entre agressividade e violência foi, de fato, esclarecedor, visto que agressão remete a adaptação, comportamento, resistência por meio de adversidades e que isso não necessariamente implica em raciocínio. Por sua vez, a violência chega como ações destrutivas, escolher a destruição a outras possibilidades. O fato é que não somos primatas, tampouco anjos caídos; somos educados, porém não nascemos como tabuleiros em branco, como você mesmo afirma. Nascemos com predisposições como: falar, pensar, amar, ser agressivo, chorar, sorrir, e não precisamos aprender sobre, isso tudo se trata de um reflexo dos estímulos gerados a fim de construir o indivíduo que somos. Em suma, sabemos que o meio sociocultural em que cada indivíduo está inserido determina como os seus genes se manifestam e me enche de esperança quando você afirma que: “o homem, em sua maioria, tem buscado viver em paz.” Ashley Montagu, tu és um entusiasta! Precisamos de pessoas entusiastas, 2018 está repleto de fascismo, agressividade e violência em diversas esferas. Que bom que te conheci!


Tive resistência em começar a ler o seu livro pela cor da capa, pelas imagens apelativas que ela traz e pela data, 1978, (caí no famoso lema de “julgar o livro pela capa”), no entanto, foi uma doce surpresa quando você finaliza os teus pensamentos apontando caminhos de amor como parte de comportamentos e escolhas diárias, visto que o amor e o altruísmo sejam resultados da nossa evolução. Você afirma que não será a arte ou o esporte que solucionará os problemas sociais de agressividade, essa transformação humana se dará através da potência do amor. E isso não se trata de uma fantasia ou uma teoria, mas de um fato. Por fim, a humanidade mais se trata de uma construção do que de uma herança e a nossa herança real está na capacidade de nos transformarmos em criadores e não mais criaturas.


Saudações,


Thais Cordeiro.


 

CARTA AO AUTOR


Brasília, 24 de setembro de 2018.


Prezadas Maria Fátima Araújo, Olga Ceciliato Mattioli e Vera da Rocha Resende,


É com grande admiração que eu, Victória Ponte de Oliveira, escrevo-lhes esta carta, primeiramente para agradecer por um despertar de consciência e por ter me feito sair de uma leitura passiva, ao considerar as dores que vibram em meu corpo e em minhas escolhas após a leitura atenta de tantos dados relacionados à violência de gênero. Não quero aqui de nenhum modo defender a dor e o sofrimento, mas, de fato, pessoalmente foi preciso adentrar em lugares mais obscuros para me tornar mais consciente do mundo e dos espaços que eu, vocês e milhares de mulheres sentimos diante de situações, ainda e infelizmente, corriqueiras, disseminadas, como a violência de gênero.


O livro Violência e relações de Gênero: o desafio das práticas institucionais, 2013, Editora CRV, organizado junto ao NEVIRG- Núcleo de Estudos sobre Violência e Relações de Gênero, da UNESP/ASSIS e ao grupo de pesquisa Violência e relações de gênero, cadastrado no CNPQ, tornou-se uma grande introdução para me retirar do comodismo para refletir e buscar compreensões com dados quantitativos e questões sobre as “coisas” e violências cotidianas que acontecem em nosso mundo contemporâneo. Gostaria, inclusive, de lhes agradecer, por me fazerem refletir sobre uma palavra que agora não mais a utilizo de qualquer modo. “Desde pequena, quando ouvia relatos e situações, principalmente em família, constituía-se a frase: Aconteceu aquela coisa com a “fulana” e o Marido”. E hoje vejo o grau de seriedade que era velarmos tanto a palavra violência, quanto abuso sexual, homicídio.


A palavra coisa, para tanto, não deve ser empregada em tais contextos de gênero, uma vez que, com esse livro, foram-me trazidas diversas informações e conteúdos. Portanto, as coisas que tanto acontecem às mulheres têm um devido nome, têm devidas consequências e não devem NUNCA ser menosprezada em maior ou menor grau. Acredito que a conotação de uma palavra em detrimento de uma respectiva frase está muito relacionada ao que nós, seres humanos, cultivamos diante de uma sociedade, uma cultura, uma ordem.


Não querendo desmerecer a palavra “coisa”, mas nesse caso, esta não se aplica ao grau de seriedade, criminalidade ao qual está escancarada a violência de gênero em nossa sociedade. Mesmo percebendo o avanço que tomamos em começar a discutir sobre esse assunto, uma vez que estamos falando daquilo que foi pouco ou quase nada discutido e apresentado nas mídias ou nas ruas a, por exemplo, 50 anos atrás. Não quero com este argumento entrar em outra ilusão de achar que as questões estão solucionadas. Longe disso, e ainda infelizmente.


A palavra “coisa” também pode nos fazer entrar no tão disseminado discurso da objetificação feminina, da apropriação da figura feminina, da dominação do corpo feminino para reprodução sexual e me fez refletir sobre nossas representações, seja nas mídias, nos quadrinhos, nas campanhas publicitárias. Havemos, portanto, de ter cautela com a frase: “coisas que nos acontecem”, pois disseminam um não considerar a mulher em sociedade, mesmo nos tempos atuais.


Mas obrigada por me lembrar de que eu posso tudo, inclusive me libertar dessas amarras sociais e buscar tentativas de rompimento de culto ao machismo. Que fique claro que são mudanças de atitudes que começam dentro de minha própria casa.

Quebra ao destino. Não há um só destino a nenhum ser vivo. Vamos, portanto, acrescentar uma pausa à tão famosa palavra de origem árabe: Maktub- “já estava escrito” ou “o melhor que tinha para acontecer”. Hoje acrescento à escrita de nosso destino, se assim o for, a frase: “Sempre podemos mudar. Sempre há o que transformar e melhorar.”


Estamos nos conscientizando da possibilidade de pensar, ainda que não exercendo por completo nossa perspectiva de vivência da NOSSA PRÓPRIA e desejada liberdade de expressão e políticas de direitos.


Como vocês bem sabem, este livro possui uma divisão em quatro partes que é 1. Estudos de gênero e Violência contra a mulher, 2. Aspectos da Violência contra a Criança e o Adolescente, 3. Questões Institucionais e de Gestão das Políticas Públicas ligadas à Violência, 4. Violência e Práticas Governamentais, totalizando 14 artigos nesta edição.

Antes de buscar diálogos e questões a respeito do livro, e para melhor contextualizar, esta obra chegou às minhas mãos porque faço parte de um grupo de pesquisa, também cadastrado no CNPQ, denominado Coletivo de Estudos em Dança, Educação Somática e Improvisação (CEDA-SI). O coletivo vem buscando se emancipar do âmbito unicamente acadêmico e se tornar um grupo independente e artístico da cidade de Brasília. Além disso, estamos nesse momento desempenhando um projeto com o patrocínio do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal, FAC. Este projeto é denominado Pequeno Tratado de Violências Cotidianas. Vale salientar que o tema da violência de gênero se encaixa perfeitamente com nossas pesquisas a respeito de violências invisíveis, aquelas que se encontram camufladas em nossos hábitos e ações no cotidiano dentro do âmbito da saúde pública e também pessoal.


Em meio a diversas ações, como circulação do espetáculo, criação de uma videodança e oficina a ser ministrada, estamos desempenhando concomitantemente a pesquisa e futura escrita de um blog sobre esse vasto tema das violências cotidianas. Eis que a obra organizada por vocês caiu em minhas mãos, e posso dizer que fez muito sentido, pois também dentro do processo realizo uma cena que envolve relações de gênero, mesmo que seja num contexto mais subjetivo e mais amplo às observações e interpretações do público.


Chegamos a fazer duas temporadas desse espetáculo: uma em 2015, quando surgiu o espetáculo, e em que apresentamos em espaços abandonados e outra agora em 2018, através desse projeto e em processo de remontagem numa versão para palco italiano. Desde aquela época, eu fazia uma cena com meu parceiro de trabalho Rafael Alves, que já se intitulava como cena do “estupro”. Por si só já era de cunho pesado, difícil para mim. Mas naquela época o espetáculo como um todo era muito latente, então o discurso, a ideia dessa cena só chegou a mim com maior peso hoje. E ainda mais velha, mais atenta às questões de gênero, percebo uma fragilidade ainda maior ao enfrentar essa “cena” todas as vezes que a executo.


Por si só são assuntos que acredito que muitas de nós realmente não queremos nem comentar, nem falar, pois passa em minha cabeça como se fosse uma maldição ruim, como se eu falasse, fosse acontecer comigo. E não há um dia sequer em que eu fique completamente tranquila ao estar caminhando sozinha de volta para casa, quando já se escurece. É quando a sensação dessa cena retorna, é quando eu agradeço por ter chegado bem em casa. Mesmo que indiretamente, ou como num momento súbito e rápido, essas coisas passam pela minha cabeça todos os dias.

Estamos sem dúvida numa nossa era, numa emancipação, numa busca por direitos, em tentar ajudar umas às outras. Mas quanto vocês acham que a sociedade tem se preparado para essa mudança? Para a ressignificação do entendimento da palavra poder?


O que posso dizer é que este livro me abriu muito mais as possibilidades de reflexão, mesmo com apresentação de aspectos técnicos, e muitos artigos voltados para pessoas que especificamente atendem e trabalham com vítimas de violência. Foquei, para tanto, na violência contra a mulher. Esta obra é uma ótima forma de consulta, já que, de fato, são inúmeras as formas de se trabalhar com o tema e com as especialidades. A condição de vida, classe social, etnia, geração, religião, campo ou cidade podem dizer bastante sobre as questões estatísticas que envolvem a violência de gênero.


Mas o que mais assusta é que ela está presente em todos os âmbitos, seja em maior ou menor grau. Além do que, estamos vivendo um processo de construção de novas medidas, o que não significa dizer que as que nós temos são 100% eficazes para servir à população. Mas esta carta, assim como as medidas, representa o início do querer mudar e buscar meus direitos em consonância com a força feminina. Avante!

Precisamos falar e citar o exemplo descrito no livro sobre emancipação psicossocial. Tratar a vítima como vítima, e não como responsável por crimes de abuso e violência contra a mulher, por exemplo. Fiquei surpresa ao ler novas medidas, como a da Argentina, uma vez que é tido um acolhimento às vitimas, e a não separação dos profissionais, tais como psicólogos, servidores sociais, policiais, até que sejam feitos todos os procedimentos. Estamos diante da possibilidade de novas posturas éticas e políticas?


Outra questão de grande relevância em minha perspectiva foi ler que a loucura, por muito tempo, fora enfatizada e ligada à questão da sexualidade feminina, desde processos envolvendo a malignidade do útero, até complicações vinculadas à libido e maternidade (apud PEGORARO; CALDANA, 2008). Este é mais um ponto a buscar discussão, gerar pesquisas e reflexões.


Dessa maneira, a naturalização da subjetividade feminina como sendo cordata, meiga e voltada para cuidados domésticos e os da família e, principalmente, da maternidade como objetivo final de toda a mulher, trouxe mais dados para salientar quem seriam as loucas, ou seja, aquelas que não se adaptassem às características dimensionadas para o que é ser mulher. (RABELO; ARAÚJO, 2013, p. 39)


O que mais fica latente nessa experiência de leitura é abrir meus olhos e descrever um pouco mais sobre esse sentimento dúbio que nos atravessa diariamente, pois, ao mesmo tempo em que vemos um avanço com relação ao surgimento de leis e remanejamento estatal, não posso esquecer-me da instância maior que é a sociedade ainda estar imbricada nesse mecanismo de sistema de autoritarismo, machista, homofóbico e preconceituoso (além de tantas outras questões).


Desse modo, fui à busca do significado simplificado da palavra “segredo”: segundo o Dicionário Online de Português, a palavra segredo revela os seguintes significados:


O que há de mais escondido; o que se oculta à vista, ao conhecimento: não conte este segredo a ninguém.

O que a ninguém deve ser dito; que é secreto; confidência: segredo confidencial.

O sentido oculto de algo: segredo do texto.

O que há de mais difícil; o que exige uma iniciação especial, em uma arte, uma ciência etc.: segredos da poesia.

Meio ou processo conhecido de uns poucos.


O que é mais impressionante é que, para mim, esta obra ainda representa os diversos significados da palavra segredo. Para muitos, a violência de gênero é um assunto que jamais deve ser dito, assim como para outros é o assegurar as questões mais ocultas.


Então como tornar esse assunto menos “sigiloso”? O livro deixa claro sobre os avanços com relação ao tempo, em que tais questões não eram sequer consideradas. Mas ainda assim, o que me faz pensar ao ler a obra é nos aspectos que ainda estão muito longe de ser contemplados. Quase que diariamente me coloco na pele de uma mulher, vitima de violência doméstica, vitima de estupro; de crianças abusadas por pessoas e contextos de relações intrafamiliares; como seria imaginar o Brasil, 12 anos atrás, sem a Lei Maria da Penha?


Ao ler este livro, muito também me veio a relação da busca pelo significado da palavra silêncio. Pelo dicionário online de português, tem-se:

Ausência de qualquer ruído: o silêncio da noite.

Sossego, repouso, inação: por alguns dias, as paixões ficaram em silêncio.

Mistério, segredo: no silêncio prepara seus golpes mortais.

Música Interrupção mais ou menos longa do som; pausa.

Sinal musical que representa a pausa.Silêncio mortal, silêncio absoluto.Guardar silêncio, calar-se.


Certa vez vi num filme, cujo nome infelizmente não me recordo, a seguinte frase: “O silêncio pode ser o grito mais alto”. Como é simbólica e forte essa frase, não acham?! E como é curioso pensar que as palavras silêncio e segredo têm correlação, dependendo do caso em que forem analisadas. Dentro do universo feminino, o culto ao mistério gerou conduções a uma relação de costumes pré-estabelecida e a atos de violência. A visão que temos da mulher ainda vem muito por uma perspectiva masculina, ou seja, da objetificação do corpo feminino, haja vista o desenvolvimento da pintura.


Este livro sem dúvida me tirou da história, aquela história que muitas vezes ameniza as violências cotidianas. Me fez pensar no que estamos fazendo e ensinando diariamente nas escolas.


Não sei se serei clara com esta informação, mas gostaria de dizer que foi muito difícil para mim, durante esse processo de leitura e escrita, resolver sair de “Nárnia”, da “Matrix”, e simplesmente ler os diversos dados que são apresentados a nós e, mais que isso, que sentimos na pele diariamente. E como foi difícil também aceitar os privilégios que obtive até então de não ter sofrido com essas questões em níveis e graus mais graves. O que dizer? Que eu passo a ser, nesse caso, a minoria de uma sociedade de mulheres. Muito doído saber que 29% de mulheres brasileiras dizem ter sofrido violência física ou sexual pelo menos uma vez na vida, sendo 16% classificados como agressões severas. E o mais impressionante: sabemos esses dados pelas mulheres que não só sofreram algum tipo de violência, mas que também denunciaram.

Quais são os impactos gerados na sociedade diante de dados como esse? Tomo a liberdade de responder através de uma citação, da página 16 do seu livro, onde se lê:

Nessa simbiose de cultura da cumplicidade e da impunidade, da dominação do poder do homem macho sobre categorias fragilizadas – principalmente mulheres, crianças e adolescentes no Brasil – desde os primórdios da época da Colonização, da triste herança histórica da escravidão, bem como das múltiplas formas de autoritarismo, encontra-se a mulher, na maioria das vezes, isolada dentro da “sagrada família”, carente de qualquer mecanismo que contribua para a contenção da violência sofrida. Resultado: ela se cala. (ROCHA, 2013 p. 16)


DEVEMOS, PORTANTO, NOS TORNAR AQUILO QUE DESEJAMOS DE NÓS, E NÃO O QUE A SOCIEDADE DESEJA DE NOSSOS CORPOS, NOSSAS REFLEXÕES, NOSSA LIBERDADE DE EXPRESSÃO. Quebremos essa força de cultura! Ao menos, graças à lei Maria da Penha os homens podem ser condenados e presos, e não “fadados” a apenas doar cestas básicas. Como é pesado ser mulher no Brasil, e como é ainda mais pesado ser mulher negra no Brasil. Todos sofremos com esse peso da sociedade machista, inclusive os que oprimem.


Não sei como começar, mas o início já se torna esse desabafo. Agradeço imensamente por esse contato. Obrigada, obrigada e muito obrigada por despertarem uma comunicação sincera, verdadeira e passional. Era o que eu precisava para iniciar a percepção de minha força interna no intuito de externaliza-la. Vocês não necessariamente entregam uma conclusão fechada, justamente por apresentarem uma variedade de artigos, mas isso que na minha opinião se fez importante: vocês dão exatamente aquilo de que tanto falamos: liberdade de buscar e de escolha. Assim pude, através da minha análise de interesses, formar opinião com relação às questões da violência de Gênero. A começar pelos temas que mais me instigaram. Quero, com isso, estar cada dia mais engajada com o tema e com as questões nos enfrentamentos diários. Mais uma vez meu muito obrigada. Desejo sempre abertura de caminhos e pensamentos, assim como vocês o fizeram com minha dança e minha formação.


Amistosamente,


Victória Oliveira

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