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Correspondência Rafael Alves e Thais Cordeiro

Diálogo entre Rafael Alves e Thais Cordeiro, jul/2018.📷


Brasília, 03 julho de 2018


Olá, Thais, bom dia!


Tudo bem?

Escrevo por meio deste e-mail pra contar um pouco do que está sendo este processo de re-criação do Pequeno Tratado de Violências Cotidianas.

Para mim tem sido diferente do primeiro processo, pois estou vendo com outro ponto de vista o tema. E para você como tem sido?

Sinto que tem se alargado o horizonte. A partir do movimento, da leitura, do cotidiano e principalmente da convivência com os colegas com a direção. Tenho me inspirado em tudo isso para dançar este conceito. Por isso, escrevi um trecho de texto por meio do qual talvez eu, me expresse melhor. Então, gostaria de compartilhar com você essa escrita, talvez poética. Espero que nesta carta, nossa comunicação possa fluir pera além dela mesma, para a poesia e o movimento da dança de re-criação deste trabalho.

O seguinte texto começou a ser escrito em 21 de junho de 2018, inspirado inicialmente no ensaio sobre o nascimento ( violência da mesoderme) guiado por Diego.

Quando nascemos somos criação

De uma camada só.

Nos relacionamos com a roda da vida.

Somos tantos e giramos a esfera do crescimento, para navegar no mar.

Penetramos no mais profundo íntimo das coisas para nos tornamos elas mesmas.

Até que nos tornamos outras camadas,

com coerência, constância e conveniência.

O início da criação é ascendente.

Numa relação vertical

rasga-se uma cisão em nós, como o sexacionar da terra, o corte na pele, o rasgo no tecido.

O que está atrás de nós, converge para dentro, como numa imaginação.

Ela desloca coisas internas na imensidão de dentro.

Numa camada de pulsação, aparecem ossos, dentes, línguas, coisas diretivas e tudo que conecta.

Um novo tecido é formado. Uma numerosa aglomeração de corpos.

Passamos a crescer violentamente. Alargando tecidos em oposição, a dor invisível do crescimento.

Sem resistência e oposição não seríamos o que somos hoje.

Nascer é tramar nossos tecidos.

É se envolver consigo mesmo.

É gastar-se de dentro para fora.

É criar novas conjunções o tempo todo.

É autopoiesis.

É uma violência da natureza.

Abraço.


Brasília, 15 de julho de 2018


Boa tarde, Rafa.


Estou bem.

Começo te agradecendo por compartilhar comigo seus pensamentos e percepções sobre o "Pequeno Tratado de Violências cotidianas", me sinto bastante conectada contigo quando leio. Tua poesia é inspiradora, me vi em tuas palavras. Me identifico, principalmente, quando tu falas da dor do crescimento, da violência invisível da natureza. Percebo que se tem uma metáfora da vida, de resiliência, de sobrevivência, de força e sensibilidade. Obrigada.

Este processo coreográfico que estamos (re)vivendo, se trata também de um processo de vida, para mim. De olhar para si, para as escolhas, para o outro, para nós, olhar para o que nos toca, violenta... e como lidar com o que nos coloca em vulnerabilidade? Quero olhar? Como passar pelo que dói? Tenho me questionado sobre. E tem sido tão importante passar por essas questões. Percebo que estamos mais maduros enquanto pessoas e dançarinos, ainda que haja, em alguns momentos, frustração no processo, na dança, na minha dança. A cada encontro eu respiro e salto do abismo, ainda há medo do que encontrar, talvez o medo seja de me encontrar.

O que tu tens sentido em relação ao teu processo pessoal?

Obrigada por estar ao meu lado e me encorajar todos os dias.


Brasília, 16 de julho de 2018


Querida, Thais

Como é bom ler a suas percepções durante este processo em dança. Vejo uma micro política dos afetos e me sinto transpassado por estas palavras.

Tenho gostado de mais da ideia de escrevemos uns para os outros, pois vejo a dança sendo coreografada aqui em nossas reflexões escritas e dançadas.

Possivelmente, isso pontencializará ainda o processo de remontagem do Pequeno Tratado de Violências Cotidianas como um todo.

Você me fez perguntas muito pertinentes e que também fazem parte dos meus questionamentos como dançarino criador.

Neste processo, o que posso dizer no momento é que dançar essas violências é dançar aquilo que a palavra não dá conta. Tudo aquilo que fica apertado em nossa garganta e não sai.

E o que é isso enquanto nos movemos? Quais as nuances? Tempos? Que corpo é esse?

Acho que antes de respondê-las devemos continuar durante todo o processo de remontagem e de apresentações nos perguntando o que é trazer para carne as violência que vivemos e as violências que percebemos no outro... Como posso ser o outro, como materializar na minha carne as violências do outro?

Lanço um desafio para nós, que tal buscarmos responder essas questões durante esse processo e apresentações, topa?


Brasília, 09 de janeiro de 2019


Rafa, meu amigo!

Findamos mais um ano juntos, resistimos, brigamos e nos acolhemos. Crescemos. Que alegria! Eu sinto verdade quando te leio, me sinto abraçada e em casa. Obrigada!

Compartilho da tua sensação do quão bem nos fez essas trocas de correspondências para o processo de pesquisa dançada e escrita. Ainda que eu concorde e acredite na importância do registro, percebo que aqui há bastante segurança, estamos distantes e protegidos. E o que eu levo mesmo comigo são os nossos encontros olho no olho, devaneios, desejos, anseios, horas de conversas que sempre terminam com um desejo absurdo de rasgar o peito a ganhar o mundo. Tu me inspira e eu nunca te falei isso.

Bem, já passamos pelo processo de temporada e credito que foi o que podíamos ser naquele tempo e espaço compartilhado. Foi dolorido, para mim, físico e emocionalmente, porém vejo a beleza transformadora que me foi gerada. Foi necessário. Veio a lesão, rompimento do ligamento colateral medial do joelho esquerdo, e me pausou, me frustrou, mas também foi necessário para eu olhar para onde importa.

Passou a temporada, passaram as pesquisas, as filmagens, passou 2018, passou seis anos.

Desejo que tu desfrutes do teu tempo com tranquilidade e inteireza, que o teu janeiro tenha pausa e respiro. Desejo que nos encontremos para trocas, sorrisos e cumplicidade.

Grande abraço,

Thaís Cordeiro.


Brasília, 10 de janeiro de 2019


Oi, Thais

Espero que suas férias tenha sido ótimas e que após o projeto Violências tenha-se processado outras experiências enriquecedoras em tua vida.

Bom, aqui estamos! Exatamente no mesmo lugar, onde nascemos e morremos. No mesmo ano, mês, dia, hora, minuto e segundo. Pronto, passou e aqui estamos novamente! Conectados ao tempo da escrita, dos processos e do instante.

Estou aprendendo nessas férias que deixar alguns aspectos morrerem é bom. E que deixar viver o que não serve é violência. Estou aprendendo e até o último instante estarei, quero me estar atento aos aprendizados! É neste lugar chamado instante que a presença é possível. Que a dança flui no palco ou nas relações. É nele que esquecemos ou despertamos. É nele que existe o mistério da vida eterna. O mistério do universo da criação. E neste tempo que podemos materializar a dança do possível, da fragilidade, da luta, da dor, da alegria.

O tempo reina e ele parece ser eterno quando estamos imersos na experiência, e como num tempo de uma dança. Tenho pensado que talvez seja preciso desistir da ideia de insistir em algumas coisas, principalmente na ideia de permanência no tempo como algo que me falta. Acho é possível estar em relação ao tempo sem ser passivo em relação futuro. Estar apenas no tempo de cada coisa, vivendo a finitude de cada momento, experiência, encontro, dança, dor, alegria, projeto, processo etc.

O fio dramatúrgico da vida que segue. Viver a “repetição” como se fosse uma nova ocasião. Encontrando outras nuances e construções. E aproveitar as possibilidades. Refletindo aqui, não dá para querer ser tudo de uma vez só, mas acho que dá para escolher o que se quer. E se deixar ser apenas uma coisa de cada vez e quem sabe, ser tudo.

Se permitir estar/sendo a cada instante é coragem em matéria de vida. Na própria pele, sabe? Se ver num corpo que perde as certezas. Com isso, eis que surge o “novo” – aquilo que não se espera, mas que se deseja. Aí algo parece valer à pena. Já não seremos mais o mesmo se a experiência de tempo nos atravessa. E como se a vida passasse um pouco mais lenta, e como se aprender fosse diversão, e como se viver fosse cena e amar fosse um filme. Agarrando-se a todo instante à estaca do tempo e da contemplação. No palco ou no cotidiano viver coletivamente seria criar as nossas próprias telas. Com a paleta das experiências pintamos as nossas próprias vivências.

Nesse sentido venho me perguntando há tempos e durante o processo do Violências, se a vida e arte são mesmo amigas? E como viver o instante coletivamente em que cada pessoa possa ser um ativador de experiências criativas e generosas?

A cada dia que passa parece clarear a ideia do sim. Dois grandes processos onde há criatividade e formação de si. Há tempos tenho buscado me criar, motivado por algumas questões que refletimos em cartas passadas: “Como dançar a vulnerabilidade da vida?” “Como passar pelo o que nos marca no tempo/espaço de uma dança?” Acho que e aí que surge o colapso entre vida e arte, uma nova ocasião para se ver mais forte.

Para isso tem sido preciso se amarrar à estaca do tempo, o tempo de cada instante, de cada processo, de cada encontro. Junto ou sozinho, o tempo reina sobre nós. Já dizia nosso grande nivelador social, a morte. Todo mundo vai morrer, inclusive eu e você. A noção disso abre uma fissura no meu próprio tempo. Preciso criar espaços para viver a vida como algo que é precioso.

Sabe as coisas boas que vivemos e que parecem intensas de mais? Com uma sensação de ter sido “mil anos” e que às vezes acontecem dentro de minutos? Então, parece que o tempo é algo diferente para cada um. Tenho a sensação de ser mais velho às vezes ou de ser uma criança pulsando no corpo adulto. Tenho a sensação de que o tempo ás vezes passa devagar e em outros momentos ele já se foi. Mas a sensação que menos tive até hoje e de que um dia, tudo vai acabar para nós. Este pensamento me coloca a beira do abismo, no sentido da vulnerabilidade da existência e das relações. A ideia de finitude parece abrir espaço para criar e até mesmo resignificar as dores e encontrar a alegria. Com isso, imagino que para criar novos contextos na vida e na arte é necessário morrer, todos os dias. E como se fosse uma preparação para morte de nossos corpos, inclusive do corpo físico.

Até breve.


Brasília, 20 de janeiro de 2019.


Rafa, querido!

Que presente essa última carta...

Me (re) lembrou que há muito tempo eu busco o meu tempo. A minha inteireza, presença e preenchimento. O meu tempo que passa, tempo que pulsa, des-acelera, pausa, dilata, pensa, pergunta, incomoda, acalenta, existe, tempo que conta. O tempo que é, o momento presente com todos os seus atravessamentos. O tempo que move, o tempo que vive.

E quando olho para o tempo, o percebo certo, incerto, flexível, subjetivo e desafiador. Quanto mais eu corro em direção ao meu tempo, me perco. Percebo, pauso e logo sigo.

Me pergunto se o tempo me consome ou se me é consumido. Ele corre e anuncia. Sinto que falar do tempo é ter esperança.

O tempo é poderoso, ele traz as transformações, o caos, a calmaria, o movimento e a vida.

Vejo o tempo no entre, no transitório, nas reticências...

Seria o tempo fictício de um imaginário coletivo?

Com carinho,

Thaís.


Brasília, 20 de janeiro de 2019.


Querida, Thais

Caminho para finitude desta correspondência, comentando que o processo do Violências me fez refletir em preciosos aprendizados e um deles foi que as pessoas me inspiram e que elas tem seu próprio tempo. Cada um tem seu caminho. Que nos somos mestres uns dos outros desde ao motorista de ônibus as relações intimas. Ensinamos uns aos outros de modo silencioso. Somos um processo vivo de transformações conscientes ou não. Cada encontro da vida humana é como um divino lampejo de expansão seja na morte, na vida, na luz, de acordar no mesmo lugar ou despertar no mesmo. Com isso me lembro da musica de Nando Reis, Here Krishnas – Mantra https://www.youtube.com/watch?v=C7gfb1dlrtg e deixo aqui como um fim que reinicia.

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Com amor,

Rafa Alves.

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